Go go go, go Johnny go

Estava tudo naquele riff inicial. A base de como fazer, de como tocar, de como ser e sentir aquilo que coloquialmente entendemos como rock n' roll – que há muito que deixou de ser, simplesmente, um género musical, para se passar a afirmar como religião. Estava? Está. E continuará a estar enquanto ainda houver um adolescente no mundo que decida, um dia, pegar numa guitarra e extirpar à força da eletricidade todos os demónios que tenha.

Chuck Berry não era “apenas” um músico. Pertencia àquela classe rara, a que chamamos de o músico. Nascido a 18 de outubro de 1926, em St. Louis, no Missouri, Berry teve a sorte de ter sido criado em berço de classe média, o que o ajudou a descobrir a música desde cedo. “A música”, em termos vagos, antes de ser ele próprio a ajudar a criar a música, o rock n' roll que apaixonaria milhões e milhões de pessoas por todo o mundo. Deu o seu primeiro concerto em 1941, ainda estudante na escola secundária de Sumner, longe de adivinhar que mudaria para sempre a face da música pop daí a alguns anos.

Mas, antes do rock n' roll, havia a atitude do mesmo. Foi preso em 1944 por assalto à mão armada, pioneiro de uma longa geração de bad boys do rock. Passou três anos num reformatório, saiu aos 21 anos. Casou, teve uma filha e empregos que a permitissem sustentar. Mas o “bichinho” da música nunca o abandonou, tendo passado várias noites a tocar com outras tantas bandas, em clubes de St. Louis, antes do conselho que mudou a sua vida (e a nossa). Disse-lhe assim Muddy Waters, músico que admirava e um dos grandes do blues: “liga ao Leonard Chess”. Leonard Chess que era, evidentemente, um dos responsáveis pela lendária Chess Records, editora que levou os blues e o rock ao mercado – ou vice-versa. E que apadrinhou o seu primeiro single: “Maybellene”, versão de um velho tema country, “Ida Red”.

Roll over, Beethoven, and tell Tchaikovsky the news

Vade retro, cantou ele, vade retro à música clássica, que agora seria o rock n' roll a mandar. Vade retro, Beethoven, Tchaikovsky e quejandos; aqui está a nova música, a música que já não é feita e interpretada por velhos compositores brancos e europeus, mas por jovens negros da América. “Roll Over Beethoven”, assim como “Maybellene”, ajudou a transformar Chuck Berry num talento emergente, antes de se tornar num dado adquirido, dominando por completo as tabelas de vendas nos finais da década de 50: “Rock and Roll Music”, “Sweet Little Sixteen” e, claro, “Johnny B. Goode”, a canção que começou por se imortalizar por via da sua própria força e que, trinta anos depois, seria imortalizada pelo cinema: quem não se lembra da icónica performance de Michael J. Fox em Regresso ao Futuro?

Mas, tão depressa quanto uma estrela nasce, uma estrela cai – isso nos ensinou décadas e décadas de cultura pop. Em 1959, Berry foi novamente preso, acusado de ter tido relações sexuais com uma menor de 14 anos, Janice Escalante. Julgamento atrás de julgamento, apelação atrás de apelação, o músico não escapou a uma condenação a três anos de cadeia, cumprindo apenas metade. Quando saiu, já Beethoven e Tchaikovsky eram uma miragem musical. O problema é que também ele, Chuck Berry, se havia tornado nisso mesmo.

Cause they'll be rockin on bandstand / In Philadelphia P.A. / Deep in the heart of Texas / And 'round the Frisco Bay

Em 1963, Chuck Berry – e Elvis Presley, e Little Richard, e Jerry Lee Lewis, e Fats Domino – não era já o último grito; a tocha havia sido passada a dois grupos de invasores. Os britânicos, liderados pelos Beatles (que foram largamente influenciados por Berry) e os californianos, sob a batuta dos Beach Boys (idem, idem, aspas, aspas). Havia-se perdido uma certa “inocência” do rock n' roll, a mesma que vemos em milhares de movimentos que se iniciam no underground e que, depois, explodem de popularidade, arrastando milhares de vozes atrás de si. Veio o rock psicadélico, veio o rock progressivo, veio o rock dos bares e dos pubs, mas os “pais” destes, os primórdios do género, não ficariam nunca esquecidos.

O punk veio celebrar o seu legado enquanto estertor da “simplicidade” no rock n' roll, por oposição aos “truques” das grandes bandas de estádio, e da pomposidade dos progressivos. Os Sex Pistols fizeram mesmo uma versão – se é que se lhe pode chamar uma “versão” - de “Johnny B. Goode”, como que afirmando que a ponte entre o “velho” e o “novo” havia sido construída. “Velho”, porque quando surgiu o punk já Berry levava mais de vinte anos de carreira; e vinte anos, na pop, é demasiado tempo, ou tempo suficiente para que um artista passe a ocupar o circuito nostálgico. Que foi, essencialmente, o que o guitarrista fez nos anos 70, antes de ser novamente preso... Desta feita, por evasão fiscal.

Desde então, pouco ou nada se ouviu falar de Berry. Aliás, houve quem recebesse a notícia da sua morte com a surpresa típica de alguém distraído: “ainda estava vivo?”. Sim, estava, e estava até a preparar o lançamento de um álbum novo, que ao que tudo indica seria o último da sua carreira. Chuck deverá ser editado algures este ano, não se sabendo ainda quando ou de que forma – ou, sequer, o que conterá. Mas será, uma vez mais, oportunidade para relembrar o homem que ajudou a construir o rock n' roll e, por conseguinte, a mudar o mundo tal qual o conhecemos. John Lennon disse uma vez que “o rock, se mudasse de nome, chamar-se-ia Chuck Berry”. Angus Young, dos AC/DC, viu-o a fazer o icónico duck walk e tomou esse estilo interpretativo para si. Dezenas de bandas escutaram as suas canções e viram ali a chave de tudo o que queriam, e poderiam, fazer. Centenas de outras bandas escutaram essas bandas. E o ciclo foi-se repetindo.

Aos 90 anos, Chuck Berry deixou por fim este mundo, mas continuará a habitar os próximos, visto que “Johnny B. Goode” foi uma das canções escolhidas pela Voyager para fazer parte do seu “disco dourado”, lançado para o espaço em 1977. Um sketch do popular programa de televisão Saturday Night Live explicou esta história da melhor forma: um povo extraterrestre encontrou o disco, escutou-o, e respondeu ao planeta Terra com uma simples mensagem: “mandem mais Chuck Berry”. Para já, a Terra enviou-o para outro patamar celeste. É que Elvis podia ser o Rei, mas Chuck Berry era Deus. E agora habitará o trono que é seu por direito.