A Comissão Europeia criticou no último relatório sobre Portugal "a grande diferença" entre as indemnizações dos despedimentos sem justa causa e as dos despedimentos com justa causa e considerou que há aspetos da lei laboral que podem desincentivar a contratação permanente.

No relatório sobre Portugal divulgado no âmbito do 'pacote de inverno' do 'semestre europeu', Bruxelas recorda que, no caso dos despedimentos por justa causa, as indemnizações por ano de trabalho são de 12 dias para contratos sem termo e de 18 dias para contratos temporários, ao passo que, quando se trata de despedimentos sem justa causa, esta compensação oscila entre os 15 e os 45 dias.

Em declarações à Lusa a propósito da forma como estas indemnizações são calculadas, Garcia Pereira disse que a jurisprudência laboral interpreta o conceito de retribuição base como aquilo a que a entidade empregadora chama no recibo salarial “vencimento base”.

“O que se passou com a noção de retribuição base – a partir da qual se calcula as compensações por antiguidade em casos de despedimento – é um caso típico em que a circunstância da lei não ser total e absolutamente explicita levou a jurisprudência laboral a ensinar aos empregadores prevaricadores como se finta o dispositivo legal”, disse o especialista, em declarações à Lusa.

“As outras componentes retributivas, apesar de terem exatamente a mesma natureza, mas que a entidade empregadora chama complemento de remuneração, remuneração complementar, complemento absorvível ou subsídio de disponibilidade e desempenho, não são consideradas remunerações base e portanto, as entidades empregadoras, por exemplo na banca, perceberam que a forma de reduzir as indemnizações por antiguidade é pegar naquilo que ajustaram pagar ao mês e partir em varias frações, chamando vencimento base apenas a uma delas”, afirmou.

Quantas horas se trabalha efetivamente hoje?

Para Garcia Pereira, o facto de muitas empresas hoje usarem as tecnologias de informação e comunicação de forma intensiva, fazendo com que não seja necessária a presença do trabalhador nas instalações da entidade empregadora, faz com que muitas vezes o tempo não seja todo contabilizado como tempo de trabalho.

“Nesta questão de que o trabalhador trabalha oito horas por dia e depois nas restantes 16 tem de estar contactável e em condições para num determinado prazo se apresentar a serviço, mas por não estar na empresa não ser considerado tempo de trabalho, é que parece que haverá vantagem em que haja lei expressa para não deixar margem para qualquer dúvida”, acrescentou.

O especialista considerou esta forma de interpretação como uma “fraude à lei”, uma vez que o tempo em que o trabalhador não está na empresa, mas está em prontidão, para avançar, não deveria ser entendido como “tempo de descanso”.

“Era bom clarificar que um trabalhador que mesmo que não esteja fisicamente na empresa, atualmente com as tecnologias da informação e comunicação, muitas atividades podem ser exercidas à distância”, acrescentou.

Considerou que a jurisprudência laboral portuguesa é “muito literal” e “pouco atenta aos direitos constitucionais”. “Como é possível conciliar o entendimento de que o trabalhador trabalha oito horas e tem de estar permanentemente em ligação com a empresa, com o direito ao repouso e o direito à organização do trabalho em condições que permitam conciliar com a sua vida familiar, social e profissional”, questiona.

“Não é possível. (…) Só é possível se tendermos a desvalorizar estas questões, que é a logica dominante nos tribunais”, acrescentou.

Direito à desconexão: ninguém pode estar ligado à empresa 24 horas por dia

O advogado especialista em leis laborais Garcia Pereira defende que era clarificador criar regulamentação específica para balizar o chamado direito à desconexão do trabalhador, manifestando-se contra a possibilidade de tratar o assunto no âmbito da contratação coletiva.

“Ainda que o direito à desconexão – ou seja, a proibição da exigência de ligação do trabalhador à empresa 24 horas por dia – já decorra quer das noções legais do período normal de trabalho e do horário de trabalho, quer dos direitos fundamentais consagrados na Constituição (…) era mais clarificador [criar regulamentação específica] ”, afirmou o advogado.

Garcia Pereira sublinhou que os preceitos legais vigentes já implicam o direito à desconexão (o trabalhador não é obrigado a estar ligado à empresa fora do seu horário de trabalho), mas diz que face ao atual estado da justiça laboral “era clarificador (…) que houvesse uma norma que estabelecesse claramente que fora da jornada máxima de trabalho não é legítimo exigir a conexão e disponibilidade do trabalhador.

Para o especialista, tanto o Código do Trabalho como a Constituição, que define direitos fundamentais como o direito ao repouso e à realização do trabalho em condições socialmente dignificantes e que permitam conciliar a vida laboral com a familiar, já implicam o direito à desconexão, mas atualmente tal não é suficiente.

“Face ao que se passa na justiça trabalho e jurisprudência dominantes, que tendem a fazer interpretações puramente literais dos textos da lei, era clarificador, para evitar qualquer margem de manobra, que houvesse uma norma que estabelecesse claramente que fora da jornada máxima de trabalho não é legítimo exigir a conexão e disponibilidade ao trabalhador, muito menos 24 horas por dia”, afirmou.

Para Garcia Pereira, essa norma deveria regular as situações em que não há prestação de atividade, mas também não há repouso, pois o trabalhador tem de estar disponível (de prontidão) e em condições de comparecer ao serviço dentro de um determinado período de tempo, exemplificando com o regime de assistência na aviação civil. “Esses regimes têm de estar regulados e são tempo que não pode deixar de ser remunerado”, acrescentou Garcia Pereira, recordando que, apesar de a lei ser clara, já houve distorções com a noção de retribuição base.

“O que se passou com noção de retribuição base, a partir da qual se calculam as compensações por antiguidade em caso despedimento, é o caso típico de como a lei não é totalmente explícita e isso levou os empregadores a fintarem esse conceito”, disse. Exemplificou com o facto de a justiça, para efeitos de indemnizações, só ter em conta a remuneração base, excluindo as outras componentes retributivas, que também são salário, mas são pagas separadamente e chamadas de “remuneração complementar” ou “subsídio de disponibilidade”.

“Como a lei não é completamente clara, quando as entidades pegam nos valores para calcularem a antiguidade para efeitos de indemnização, apenas consideram o vencimento base. A base de cálculo para a compensação é apenas a primeira parcela e isto é uma fraude à lei”, afirmou.

Questionado sobre se tem conhecimento de casos de trabalhadores que tenham apresentado queixas por abuso do empregador no que toda ao direito ao repouso, Garcia Pereira responde: “Tenho conhecimento de vários conflitos precisamente sobre esta matéria, sendo certo, porém, que a situação atual da justiça laboral - quer pelo seu custo, que é escandalosamente alto, quer pelo generalizado miserabilismo das indemnizações que pratica, designadamente a título de danos morais (…) - é altamente desincentivadora da intentação de processos judiciais sobre questões desta natureza”.

Garcia Pereira considerou ainda que a jurisprudência laboral em Portugal é “muito literal”: “As pessoas limitam-se a analisar direito plasmado na lei, e ninguém se preocupa com o direito vivo, como essas normais no dia-a-dia funcionam ou não”

“Presentemente, na justiça laboral, em particular centros urbanos e especialmente na zona de Lisboa, o critério preferencial de apreciação do desempenho dos tribunais é meramente quantitativo” e a jurisprudência guia-se pela lógica do “avianço estatístico”. “Ora sentenças não são chouriços!”, disse.