Depois de anos passados em frente a um computador a apostar ‘online’ e a perderem tudo o que tinham António e João [nomes fictícios] decidiram que era hora de parar e pedir ajuda. João começou a jogar com 17 anos. Todos os dias acordava a pensar no jogo e por mais que tentasse parar não conseguia, contou à agência Lusa.

Apesar disso, considerava-se “um jogador consciente”, porque nunca teve “a tentação de criar dívidas para alimentar o problema do jogo”. “Num dia colocava dez euros numa conta ‘online’ que transformava em dez mil. O problema é que gostava de associar o risco ao valor do dinheiro que apostava e muitas vezes perdia numa só aposta o que tinha angariado numa semana”, contou o jovem.

Jogou durante sete anos e hoje admite que foi um período “muito sufocante” - “mantém-se uma vida paralela, ninguém percebe. Os jogos online estão disponíveis 24 horas por dia e é um ritmo alucinante”.

João pediu para ser impedido de jogar, mas não funcionou. “Excluía-me de um ‘site’ e registava-me noutro”, além de haver sempre a possibilidade de revogar essa autoexclusão nas casas de apostas.

“Tive muitas dificuldades em gerir o meu dinheiro e a minha vida. Cheguei a um ponto extremo”, confessou João, que apostava maioritariamente em jogos de ténis e futebol.

Na altura, o jovem vivia com uma namorada e apercebeu-se que estava a destruir a relação com ela e com a família. “No meio do desespero a minha família procurou a ajuda de um psicólogo que me aconselhou a ir a uma reunião dos Jogadores Anónimos”, recordou.

Foi nas reuniões dos Jogadores Anónimos que descobriu a solução para o seu problema. “Estou há dois anos sem jogar”, disse, com orgulho.

Para João, o sucesso do programa baseia-se na partilha das histórias e na “forma como se estruturam as reuniões de modo a que todos falem sobre si, se identifiquem uns com os outros e tenham as melhores soluções para resolver os seus problemas”.

A história de João assemelha-se à de António, que parou de jogar há quatro meses. “Sou viciado no jogo, estou a tratar-me”, começou por contar à Lusa. “Sempre joguei nos jogos ‘online’ mas com valores muito baixos. Em finais de 2015, apostei cerca 200 euros e comecei a ganhar. Cheguei a ter cerca de 3.000 euros”, disse António, de cerca de 30 anos.

O pior aconteceu em 2016: “Perdi a grande banca que tinha a jogar sem parar. Foi o ano em que estourei a minha vida”, desabafou.

Pediu várias vezes a autoexclusão nos ‘sites’ internacionais onde jogava, mas continuavam a desafiá-lo para jogar. “Ainda na semana passada me ligaram a dizer que estavam a fazer um novo ‘site’ e que tinha um bónus de 50%”.

António nunca roubou, mas pedia emprestado para jogar. Endividou-se e hoje tem uma dívida para pagar. No início deste ano decidiu que tinha de parar. “Nesse dia, entrei lá outra vez, mas não apostei. Decidi que tinha acabado naquele momento e que tinha de pedir ajuda”, recordou.

Falou com a família que o apoiou. “Neste momento, estou no fundo do poço, mas tenho uma escada rolante, vou subi-la e curar-me”, disse António, para quem o apoio dos Jogadores Anónimos é fundamental. “Nas reuniões ouço histórias piores do que as minhas e são elas que me dão muita força e me levam a pensar que parei tarde, mas que ainda fui tempo”, contou.

António vê o vício como “um monstro” que “come a vida” dos jogadores e não morre. “Apenas adormece, não tem cura. Eu quero adormecê-lo para sempre”, disse, com convicção.

Durante muitos anos “Joana”, com cerca de 60 anos, jogou no casino e mais tarde ‘online’. Durante três semanas que apostou na internet gastou mais do que em três meses nas máquinas do casino. “’Online’ é pior, porque o casino está dentro de casa”, disse Joana, que deixou de jogar há vários anos.

À Lusa lamentou que o jogo patológico não seja visto em Portugal como uma doença, como está reconhecido pela Organização Mundial da Saúde, sublinhando que a taxa mais alta de suicídio a nível das adições é a do jogo.

Mais de metade (60%) das pessoas que chegam ao Instituto de Apoio ao Jogador tem problemas de adição ao jogo ‘online’ e são maioritariamente jovens. A “rutura financeira” é o grande motor que os leva a pedir ajuda, segundo o coordenador do Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ) e especialista em adições, Pedro Hubert.

Mais 13 mil jogadores pediram para ser impedidos de jogar

Mais de 13 mil jogadores, num total de cerca de meio milhão registados nos ‘sites’ de jogos ‘online’ em Portugal, pediram para ser impedidos de jogar na tentativa de fugir a um vício que atinge sobretudo os jovens.

Há dois anos foi legalizada e exploração e a prática dos jogos e apostas ‘online’ em Portugal. A primeira licença foi emitida a 25 de maio de 2016 e desde então 13,3 mil apostadores pediram “autoexclusão”, numa média de cerca de mil jogadores por mês, segundo dados do primeiro Relatório Atividade do Jogo Online em Portugal.

Para Pedro Hubert, estes números revelam “a atração que a sociedade tem pelo jogo” e por “este novo modo de jogar [‘online’]”. Mas – advertiu - apostar ‘online’ representa “um risco grande”, principalmente para os jovens, porque tem uma “série de atrativos”, como ser “fácil, barato, cómodo e seguro e “estar “sempre disponível”, que ”favorece muito a adesão ao jogo”.

Pedro Hubert explicou que os jovens são “uma população de risco” devido a uma “série de particularidades” que os caracterizam, como “a imaturidade, a impulsividade, a tomada de decisão e a ilusão de controlo”.

Os dados que constam do relatório, publicado no ‘site’ do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ) permitem constatar o interesse que os jovens têm por este modo de jogar. Dos mais de 523 mil jogadores que estavam registados, a 31 de março, nas quatro entidades licenciadas, 60% têm idades entre os 25 e os 44 anos. Destes, cerca de 40% têm entre 25 e 34 anos.

Os jovens com idades entre os 18 e os 24 anos representam quase 30% dos apostadores, refere o documento, segundo o qual mais de metade do total reside nos distritos do Porto, de Lisboa e de Braga.

Analisando o primeiro trimestre do ano, o relatório indica que neste período 4,3 mil jogadores - cerca de 2,2% do total - pediram autoexclusão, um mecanismo que pretende “prevenir o jogo excessivo e evitar comportamentos e práticas aditivas”.

“Nestes casos, a autoexclusão até funciona, o problema é que depois vão jogar noutros ‘sites’ não licenciados”, disse, explicando que “o problema não está no jogo”, mas na relação problemática que algumas pessoas têm com o jogo.

Para acautelar estas situações, as pessoas “têm de ser informadas sobre os riscos” que correm, sobre “as formas saudáveis de jogar” e os tratamentos que existem no caso de sentirem problemas, defendeu o especialista em jogo patológico.

Segundo Pedro Hubert, é este apoio que “tem faltado muito em Portugal”, seja nos casinos ou nos ‘sites’ agora licenciados. "Ainda bem que [o jogo ‘online’] foi legalizado”, mas “peca claramente pela componente do jogo responsável”, disse, contando que há pessoas com problemas que nem sabem onde se dirigir. A “partir do momento em que regulamentam a lei, também têm que dar as contrapartidas”, sustentou.

Em 2016, segundo o relatório, foram apoiados 135 pessoas com problemas de jogo nos 15 Centros de Respostas Integradas, que funcionam junto das Administrações Regionais de Saúde.

Desde a entrada em vigor do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas ‘Online’, em 29 de junho de 2015, foram notificados 220 operadores ilegais para encerrarem a sua atividade em Portugal, enviadas 146 notificações aos prestadores intermediários para bloquearem os ‘sites’ e feitas nove participações ao Ministério Público para instauração de processos-crime.

Apesar das notificações, os operadores continuaram a disponibilizar jogos e apostas ‘online’ em Portugal. O mercado português encontra-se atualmente repartido por quatro entidades exploradoras, às quais foram emitidas seis licenças. Entre janeiro e março, a receita bruta gerada foi superior a 13,9 milhões de euros, um aumento de quase 50% face ao último trimestre de 2016 (cerca de 4,6 milhões).

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