Sexta-feira, final da tarde. Nas redacções ultimam-se os preparativos de fecho de jornais. Nas rádios e televisões confirmam-se os convidados e o alinhamento noticioso é, em todo o lado, aquele que é óbvio. Atentados em Nice matam dezenas de pessoas e ferem centenas. Mais uma vez a França de luto e o terrorismo a bater à porta.

Sexta-feira, princípio da noite. Um grupo não identificado de militares anuncia um golpe de Estado na Turquia. Um comunicado lido pelas forças revoltosas na televisão pública, acusa o presidente Recyp Erdogan de perverter a democracia e de inverter o - velho de quase cem anos - secularismo da lei e do poder público.

Alguns jornais já não vão a tempo de mudar as primeiras páginas. Resta o on-line que todos praticam há vários anos. As televisões têm mais sorte. Os convidados são, quase todos, peritos em ambos os assuntos. Terrorismo e Turquia, temas parecidos. É só dar a volta ao texto - primeiro a Turquia, porque está a acontecer, e logo depois Nice, com os corpos e os choros ainda bem quentes na rua.

Ana Santiago e Ricardo Nunes foram apanhados numa quase lua-de-mel em Istambul - de facto, foram assistir a um casamento de amigos locais que já não vai realizar-se, pelo menos na data aprazada. Desde sexta-feira à noite mudaram um bocado de vida. Metidos num bairro "fancy" da zona asiática da cidade, vão dando conta dos tiros que ouvem e dos helicópteros que os sobrevoam. Os amigos, nas redes sociais, vão-lhes pedindo que contem ao mundo o que mundo quer saber mas desconhece. O que é que se passa?

Ricardo desdobra-se a falar para as televisões e jornais. Ana conhece bem umas boas dúzias de jornalistas, já que trabalha há anos na área da comunicação - agora na "Start Up Lisboa", uma incubadora de empresas. Dizem o que vêem e sobretudo o que os amigos turcos, em casa de quem estão hospedados, lhes contam. Estes, ocidentalizados, muçulmanos pouco ou nada praticantes, têm receio. "Os meus amigos turcos estão em choque, ninguém esperava isto. Não gostam do governo, mas também não confiam nos outros. Eles nem sabem quem são os outros", desabafou Ana Santiago, horas depois de iniciado o golpe.

Estou no topo do bairro de Bebek, um bairro calmo e residencial, numa casa de ré-do-chão com terraço onde fumo desalmadamente e sempre que passa um avião, que julgo militar, a casa estremece, é um barulho ensurdecedor e fugimos para dentro

Do lado de cá, já se fala em cravos e em revolução. "Que sorte que tens, estás a viver um 25 de Abril", exclama um amigo. Ana nem idade tem para se lembrar desse dia. "Estou no topo do bairro de Bebek, um bairro calmo e residencial, numa casa de ré-do-chão com terraço onde fumo desalmadamente e sempre que passa um avião, que julgo militar, a casa estremece, é um barulho ensurdecedor e fugimos para dentro. Na rua ouvem-se buzinas, que vêm de longe e orações/preces/exortações das mesquitas", escreveu no FaceBook pouco depois. Deitaram-se por volta das seis da manhã…

Mais do que um contra-golpe de grande eficácia, é agora seguro que, para além de algumas traições de última hora, quem parou os rebeldes foram os imãs das mesquitas e os líderes dos partidos tradicionalistas - Erdogan está longe de ser o chefe dos radicais islâmicos no país. O golpe final veio das potências ocidentais e da Rússia. Quer Barack Obama quer Vladimir Putin sustentaram que salvar a democracia na Turquia era apoiar o governo estabelecido contra os revoltosos. Quanto à parte do Exército e da Força Aérea que se sublevou, é evidente que deixou de lutar quando viu milhares de pessoas a barrar os carros de combate e a rodear os soldados de infantaria. O "25 de Abril" acabava ali. O povo não apoiou nenhum Salgueiro Maia, antes marchou contra ele. Se é que havia um Salgueiro Maia…

"Os secularistas são ainda muitos, vê-se na rua. Mas poucos em força, acho que pouco afeiçoados à política e à luta", refere Ana Santiago em declarações ao SAPO24. "Essa é a mágoa deles, sentem que falharam", sustenta a portuguesa. Durante a tarde, passeando pelas ruas calmas da parte europeia de Istambul, "parece algo entre a Avenida de Roma e o Parque das Nações, gente a passear, carros de bebés… não há mais polícia do que é costume", revela-nos.

É uma sensação estranha, ver na mesma praça pessoas a rezar depois do chamamento das mesquitas e outras ao lado a passear, a fumar, a comer, sem ligarem nenhuma

Na velha cidade, ali mesmo no centro histórico asiático, ao lado da torre de Gálata, Ana e Ricardo vêem estranhas confluências de culturas. "Mulheres de mini-saia e lenço na cabeça, dizem-me que é de propósito, uma espécie de "statement" (afirmação)", conta Ana Santiago. "E uma de preto, cabeça coberta, a fumar", aduz a mesma fonte. "É uma sensação estranha, ver na mesma praça pessoas a rezar depois do chamamento das mesquitas e outras ao lado a passear, a fumar, a comer, sem ligarem nenhuma".

Mas todo este "melting pot" poderá ter os dias contados. "Ergodan só vai sair mais forte disto tudo porque quem está na rua são apoiantes dele", sustenta Ana. "Os meus amigos não gostam deste presidente, mas também não sabem quem está do outro lado e se podem confiar. Desde o início disto (golpe), nunca os ouvi contentes por estarem a tentar derrubar o presidente", revela. "Acima de tudo estão confusos e com receio do futuro… Temem que a liberdade já não dure muito". "Os meus amigos sentem-se culpados e tristes, por nada terem feito até hoje para combater o que temem. «Eu falhei», diz-me o meu querido S." (nome retirado por razões de segurança). É esta a tristeza de gente normal que Ana traz de Istambul. "Mas não vi burkas", relata.

"Se de agora em diante as mulheres não tomarem parte da vida social da nação, jamais conseguiremos atingir o nosso desenvolvimento completo. Permaneceremos irremediavelmente atrasados, incapazes de sermos tratados de igual para igual pelas civilizações do Ocidente". Palavras do "pai da Pátria", Kamel Ataturk, proferidas em 1927. Há uma foto do próprio, rodeado de mulheres de cabeça descoberta e blusa de botão aberto. Data de 1931.

"Democracia, liberdade, primado da lei… para nós, estas palavras já não têm nenhum valor. Quem ficar do nosso lado na luta contra o terrorismo são nossos amigos. Quem ficar do lado contrário são nossos inimigos". Palavras de Recyp Erdogan, proferidas na manhã de sábado, após a vitória sobre o golpe. Os "terroristas" a que se refere são os nacionalistas curdos do PKK. Do Daesh, dizem as más-línguas e algumas imagens dispersas que nunca os hostilizou. Horas antes do discurso, o presidente turco pedia asilo político em Itália e na Alemanha. Diz-se que lhe foi recusado, e que terá tentado o Irão. Ninguém confirma. Mas já de madrugada a sorte da batalha virou. E ele ficou.

Na noite de sábado, pouco restava da revolta. Em Ancara, a capital do país, Paulo Pedroso, ex-ministro do Trabalho e da Segurança Social, atarefava-se no aeroporto para arranjar bilhete de volta. Está a trabalhar num projecto da União Europeia em conjunto com a Turquia. O barulho à sua volta impediu-o de atender a primeira chamada. Respondeu à segunda.

"Acabo de atravessar Ancara de táxi. Apenas em frente ao Parlamento há vestígios sérios do enfrentamento. A avenida Ataturk está parcialmente cortada em vários sítios. Num dos sentidos os carros circulavam pelo passeio. O túnel perto do Parlamento está obstruído por camionetas do município. Na minha zona residencial todo o dia esteve tudo calmíssimo", assegurou ao SAPO24. "A mercearia do bairro, o barbeiro, tudo estava normal", afirmou.

fala-se de militares da região do Sudeste, da fronteira com o Iraque, o Irão, a Síria, o mesmo é dizer aquela em que há combates a sério com os curdos e contacto com o conflito sírio mais próximo

Os apoios ao Governo, vindos de largas camadas da população, ainda tinham vestígios à hora tardia em que conversámos. "Assim do género do fim das manifestações, pessoas dispersas pelas ruas, algumas embrulhadas em bandeiras turcas, outras agitando bandeirinhas nacionais", descreveu o ex-governante. Tropa na rua nem vê-la, polícia mais que muita, "mas aqui é sempre assim desde o último atentado", adiantou.

Enquanto mais de 2000 juízes - a Turquia é um país grande e populoso… - eram demitidos e presos, e dos cerca de "meio milhar" de soldados oficialmente envolvidos na revolta mais de três mil eram detidos, as especulações sobre a "culpa" da revolta e a culpa do seu fracasso são mais que muitas. Para Paulo Pedroso, para além da versão oficial de envolvimento de Fethulah Gullen – um antigo aliado de Erdogan que se auto-exilou da Turquia – "fala-se de militares da região do Sudeste, da fronteira com o Iraque, o Irão, a Síria, o mesmo é dizer aquela em que há combates a sério com os curdos e contacto com o conflito sírio mais próximo".

A mesma fonte dá conta de outra versão, "um golpe militar à egípcia, de militares laicos". O que até faria sentido com a oposição do Egipto, ainda ontem no Conselho de Segurança da ONU, a um voto de confiança no regime de Erdogan. Militares "enganados, que esperavam uma grande mobilização, popular que não ocorreu", é também outra hipótese credível. Mas no fundo está sempre o mesmo problema: "A mobilização através das mesquitas (de oposição à revolta) foi muito intensa", explica Paulo Pedroso.

A 2260 quilómetros de Istambul - e mais uns quantos de Ancara -, há flores na rua, na Promenade des Anglais. Um soldado de Alá ou um simples louco - ou uma clara mistura de ambas as doenças – puxou da sua profissão para matar pessoas. Ao volante e aos ziguezagues com um camião de entregas – a sua ocupação definida -, por uma das artérias mais conhecidas do planeta Terra, foi matando os "enfants de la patrie" que encontrava pela frente, alguns mesmo crianças, que comemoravam a dia nacional de França. Por alguma razão desconhecida, todos os tiros disparados pela polícia e que pontificavam o pára-brisas do veículo, estavam do lado errado e tardaram em atingi-lo. No caminho para o paraíso, matou pelo menos 84 cidadãos, e deixou entre a vida e a morte mais de 50. Pelo menos uma das vítimas era uma muçulmana.

E prometo que esta será a última citação deste texto. É um comunicado difundido pelo alegado "estado islâmico", alguns dias antes de Mohamed Bouhlel, tunisino com autorização de residência e trabalho em França, ter dado à chave de ignição da camionete da morte. "Se não tiverem engenhos explosivos ou balas para matarem infiéis americanos e infiéis franceses, ou os seus aliados, esmaguem as cabeças deles com pedras, chacinem-nos com uma faca, atirem o vosso carro contra eles, atirem-nos de um sítio qualquer, sufoquem-nos ou envenenem-nos".

Bouhlel era um homem que "cuidava dos seus filhos". Palavra de vizinhos.

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