Vozes de Chernobyl, da nobel 2015 Svetlana Alexievich (com prefácio do jornalista português Paulo Moura), reúne o relato, os desabafos e as derrotas de quem sofreu na pele os efeitos do desastre nuclear de Chernobyl, Ucrânia, a 26 de abril de 1986. As ilusões do governo soviético para conter a situação surgem como uma sombra agarrada a cada testemunho.

Ao contrário da jornalista ucraniana a viver na Bielorrússia, não vamos reunir centenas de vozes. Não fizemos milhares de entrevistas, nem achamos ser este artigo capaz de nos promover ao Nobel da Literatura. Todavia, as semelhanças entre as duas histórias, entre os dois desastres que, nos respetivos tempos, marcaram de indelével jeito a história atómica, vêm ao de cima.

Seis anos depois do terramoto em Fukushima, Japão, que deu origem a um tsunami e precipitou o desastre na central nuclear daquela cidade, as autoridades dizem que está tudo controlado. Apesar disso, as pessoas continuam a ter medo de regressar a casa. 

Todavia, o governo japonês prepara-se para levantar as ordens de evacuação em mais dois municípios do distrito.

É a emissora pública do Japão, NHK, que dá conta de uma reunião, esta sexta-feira, onde foram discutidas as hipóteses de levantar as ordens de evacuação em parte da cidade de Namie e também de Tamioka. Numa altura em que a radiação no reator nuclear está nos níveis mais altos desde 2011, mais zonas da região veem as ordens de evacuação retiradas.

Os níveis de sieverts, a unidade de “dose de radiação equivalente absorvida”, agora divulgados foram medidos depois de as câmaras penetrarem com maior profundidade no reator número dois da central, e, por isso, mais próximo do combustível nuclear afetado. Isto explica o número mais elevado. No entanto, é também testemunho dos preocupantes valores que ainda existem na área. A título de exemplo, em fevereiro deste ano, os valores dentro de um dos reatores afetados depois do tsunami de 2011 chegavam aos 530 sieverts por hora. Uma única dose de 10 sieverts mata em poucas semanas.

Apesar disso, milhares de pessoas que fugiram das zonas próximas da central nuclear de Fukushima Daiichi há seis anos correm o risco de perder subsídios de habitação caso não regressem às suas casas. Ao todo, conta o jornal britânico The Guardian, a medida afetará umas “estimadas 27 mil pessoas que não estavam a viver dentro da zona de evacuação obrigatória imposta depois de Fukushima ter sido palco do pior acidente nuclear na história do Japão.”

15.893 morreram e 2.553 desapareceram no tsunami de há seis anos, e 160 mil fugiram das zonas próximas da central. Números do mês passado, avançados também pelo The Guardian, davam conta de que quase 80 mil pessoas ainda estão deslocadas. O primeiro-ministro avança com números superiores e diz que seis anos depois ainda há mais de 120.000 desalojados.

A caminho dos Jogos Olímpicos 2020

“Nos últimos seis anos conseguimos estabilizar a situação na central”, afirmou Satoru Toyomoto, supervisor do processo de desmantelamento da central Fukushima Daiichi do Ministério da Energia, Comércio e Indústria japonês. A limpeza da central, palco do maior desastre nuclear no planeta desde Chernobyl, deverá levar entre 30 a 40 anos e custar biliões aos cofres do Japão.

“Trabalhamos para continuar a melhorar a situação e para que esta não represente nenhuma preocupação para os turistas”, afirmou Toyomoto aos jornalistas em Tóquio, dias antes do sexto aniversário, a 11 de março, do terramoto e tsunami que desencadearam o desastre nuclear.

Na mesma linha, Naohiro Masuda, diretor dos trabalhos de desmantelamento da TEPCO (empresa de energia japonesa), sublinhou que os níveis de radiação dentro da central e nos seus arredores “continuam estáveis”, pelo que “não há nenhum impacto possível” sobre os residentes da zona nem para o ambiente.

Os críticos, porém, acusam o governo japonês de estar a subvalorizar a situação por causa dos Jogos Olímpicos de 2020, em Tóquio, a capital do país, a cerca de 260 quilómetros de distância.

“[Shintzo] Abe disse que Fukushima estava sob controlo quando foi ao estrangeiro promover as olimpíadas de Tóquio, mas nunca disse algo semelhante no Japão”, diz Mitsuhiko Tanaka, antigo engenheiro nuclear da Babcock-Hitachi, citado pelo The Guardian.

“Qualquer um aqui pode ver que a situação não está sob controlo. (...) Se as pessoas com o estatuto de Abe repetirem algo vezes suficientes, acaba por ser aceite como verdade”, acrescentou Tanaka, engenheiro que ajudou na construção de parte do reator quatro da central, e que tem sido muito crítico sobre a forma como o governo japonês tem lidado com a situação.

Impacto Desigual

“Não me vou mudar porque acredito que as coisas vão ficar bem. Há alguma informação que me deixa um pouco preocupado, e posso ter sido radiado [sic] em certo grau, mas tem de ser dentro de um limite aceitável. No fundo, acho que decidi que vou ficar bem. Quero acreditar que tudo vai ficar bem. Não estou a trabalhar para uma empresa que me permita mudar de casa. A minha mulher perguntou-me porque não evacuamos o local com eles, mas tudo o que lhe pude dizer foi que se quiseres ir, podes ir. Mas eu vou aqui ficar a trabalhar e a ganhar a vida. Pelo meu filho, tenho de ter cuidado. Preciso de pagar as minhas despesas, hipoteca, despesas da escola. Se estivesse sozinho, podia ganhar a vida em qualquer lado. Mas tenho de pensar no futuro do meu filho.”

As palavras são de um residente de Fukushima, entrevistado sobre os medos da esposa com a radiação, citado por um relatório da Greenpeace. As mulheres de Fukushima são quem mais tem sofrido com o desastre.

Para lá dos gabinetes de Tóquio, são as pessoas que vivem numa espécie de incerteza nuclear. Com a vida em suspenso, dividem-se entre preservar a saúde ou garantir que têm dinheiro para sobreviver. É que foi a capital, a cerca de 200 quilómetros da zona afetada, quem recolheu os benefícios da central (com a energia produzida). E agora são os habitantes da zona rural de Fukushima que tem viver com o problema.

Os ativistas insurgem-se contra aquilo que dizem ser uma violação do direito das pessoas deslocadas a viver num ambiente seguro. Há campanhas a pedir ao governo de Shinzō Abe para declarar os bairros de Fukushima impróprios para a habitação humana, a menos que a radiação atmosférica desça para menos de 1 milisievert por ano, o valor máximo de exposição pública recomendado pelo Comité Internacional de Proteção Radiológica (ICRP, na sigla em inglês).

O relatório da associação ambientalista Greenpeace, onde surge a citação que abre este ponto, foca-se no impacto do desastre e das políticas que se lhe seguiram na vida das mulheres afetadas. Por serem um grupo de risco - tanto por serem mais vulneráveis aos efeitos da radiação, tanto por causa das desvantagens sociais que enfrentam, são o foco do documento chamado “Unequal Impact”, ou “Impacto Desigual”.

As medidas de repopulação das áreas evacuadas (ou de onde a população fugiu “voluntariamente") são criticadas. “As políticas do governo de Abe para reativar os reatores nucleares e repovoar as zonas contaminadas podem apenas ser caracterizadas como violência deliberada e estrutural contra as vítimas do desastre de Fukushima. É o resultado direto da pressão de grupos tanto doméstico como internacionais para minimizar os custos políticos e sociais do desastre de Fukushima”, pode ler-se.

“As políticas de repopulação significam também que as vítimas de Fukushima vão perder os seus já inadequados pagamentos de compensação um ano depois de as ordens de evacuação serem levantadas. Muitos estão já a ser confrontados com a perda dos subsídios de habitação. As mulheres, já em severa desvantagem económica, vão sofrer impactos ainda maiores. Muitos podem ser forçados a voltar contra a sua vontade.”

“Esta decisão impossível de voltar ou não por razões económicas é uma crescente crise de direitos humanos - e uma violação, numa sucessiva lista de violações de direitos humanos levadas a cabo pelo governo japonês contra as vítimas do acidente nuclear de Fukushima.”, refere ainda o relatório.

Kazuko Ito, advogado e secretário-geral da organização não-governamental Human Rights Now (Direitos Humanos Já), de Tóquio, disse ao The Guardian que “o Governo tem a responsabilidade de proteger os direitos humanos das pessoas deslocadas, mas não reconhece esta obrigação. Em vez disso, desvaloriza o impacto do acidente na saúde, especialmente os perigos associados à exposição prolongada.”

Justin McCurry, correspondente do The Guardian em Fukushima, conta a história de Noriko Matsumoto. Quando o desastre aconteceu, Matsumoto vivia com o marido e as duas filhas a 70 quilómetros da central, em Koriyama, fora da zona de evacuação obrigatória instituída pelo governo de Tóquio.

Quando decidiu fugir com as filhas, Matsumoto deixou para trás o marido, que ficou em Koriyama a gerir o restaurante que tinham. Por causa do preço das viagens, veem-se uma vez a cada dois meses.

Agora, vê-se confrontada com as garantias do governo de que tudo está bem. As autoridades tentam convencer os cidadãos a regressar às zonas evacuadas, dizendo que tudo foi descontaminado.

Mas, se os níveis de radiação na casa de Matsumoto estão, hoje, abaixo dos limites impostos por Tóquio, as crianças, insiste Matsumoto, continuam em risco: “É verdade que a radiação atmosférica baixou, mas não acontece o mesmo no chão e no solo”.

O objetivo a longo termo do governo de Shinzō Abe é cumprir as recomendações do ICRP, com apenas 1 milisievert por ano. Porém, Tóquio está a encorajar as pessoas a regressar a zonas onde os níveis de radiação estão abaixo dos 20 milisievert - um limite anual, lembra o The Guardian, que se aplica aos trabalhadores de centrais nucleares.

“Evitar uma grande zona de exclusão que serviria como lembrança constante dos impactos de um desastre nuclear - como a zona de exclusão de Chernobyl - tem sido a força motriz por trás de decisões de atuação - apesar da realidade de que muitas áreas contaminadas não podem ser descontaminadas”, lê-se na introdução do relatório da Greenpeace.

As semelhanças deste relatório da associação ambientalista com os testemunhos que Svetlana Alexievich reuniu no seu livro são várias. A credibilidade de cada uma delas depende da confiança que se queira dar às respetivas fontes. Mas os efeitos (na saúde, na natureza e na sociedade), esses, acabam sempre por ser os mesmos.

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