O que é aquele desporto de brutamontes chamado Rugby?

Rugby, aquele jogo de selvagens praticado por cavalheiros (desconhecemos de onde proveio a frase), está na sua fase dourada em termos de eventos desportivos, número de jogos e praticantes, assim como de crescimento a nível de adeptos.

Não há dúvida nenhuma que é uma modalidade diferente, altamente física, mas onde a técnica e estratégia são determinantes para o desenrolar do encontro. Desengane-se quem pensa que o rugby é só “brutalidade”, “ir contra o adversário” e “duelos de corpo contra corpo”.

Pelo contrário. O objetivo é conseguir criar, encontrar e atacar o espaço entre os placadores (é o nome dado aos quinze jogadores que estão sem bola e que a querem recuperar), para criar uma situação de ensaio iminente.

Mas avançando nos “manuais básicos e intermédios” do Rugby, vamos “placar” o tema em questão: All Blacks e British & Irish Lions.

And The World is All Black(s)

Todos sabem quem são os All Blacks, a mítica selecção da Nova Zelândia que enverga um equipamento negro como a noite, que tem aquela dança de guerra (há mais do que um tipo de “dança”, dependendo da ocasião) e que normalmente ganha quase todos os jogos que disputa.

Tricampeões mundiais (duas vezes de forma consecutiva, em 2011 e 2015), só 7 derrotas nos últimos 100 jogos (a última frente à Irlanda, num estádio cheio em Chicago), dominadores no Hemisfério Sul e Norte, os All Blacks tomaram controlo do Planeta da Oval.

É normal ouvir pessoas que nunca viram rugby dizer que sabem quem são os All Blacks e, em especial, Jonah Lomu (falecido em 2015), aquele “monstro” avassalador que tirava um, dois, três, quatro ou cinco adversários do caminho para chegar à linha de ensaio.

Por isso, rugby muitas vezes é igual a All Blacks, pelo ímpeto, intensidade, dinâmica e ritmo que os neozelandeses dão ao jogo. Mas de onde vem este ascendente e como se explica?

Expliquemos (muito resumidamente), recorrendo a cinco palavras-chave: recrutamento, trabalho específico, estrutura interna, competição e regras rígidas.

O recrutamento no rugby neozelandês define-se não só através do potenciamento do produto interno bruto (jogadores nascidos na Nova Zelândia), mas também pela "captura" dos melhores dos melhores jovens (com 12/13 anos) dos territórios da Samoa (o falecido Jerry Collins), Tonga (Malakai Fekitoa, por exemplo) ou Fiji (Waisake Naholo).

Ao fazer isto, a Nova Zelândia aumenta “brutalmente” a sua base de escolha para as várias equipas que possui a nível escolar/universitário, as equipas de regiões (há duas competições dedicadas a esse patamar) e, adicionalmente, os profissionais (que competem no Super Rugby, Liga composta pelas melhores franquias da África do Sul, Austrália, Japão, Argentina e, claro, Nova Zelândia).

A ideia é engrandecer os All Blacks, levando-os ao máximo possível. É uma cultura assente nesse princípio primário, de que a selecção está em 1.º lugar.

Depois, as outras palavras-chave são traduzidas através do facto do país possuir dos melhores técnicos a nível mundial (a quantidade de clubes e selecções estrangeiras que têm neozelandeses como seleccionadores ou treinadores específicos supera é enorme), das regras rígidas de seleção (para se jogar nos All Blacks tem de se estar a jogar efetivamente na Nova Zelândia, jogadores a praticar a modalidade fora do país não são elegíveis) ou da forte estrutura interna (a federação neozelandesa preocupa-se primeiro consigo e só depois com a World Rugby, federação internacional da modalidade).

A título de exemplo, veja-se a saída de um dos jogadores mais promissores (Steven Luatua). O n.º 8 estava em vias de receber um novo contrato (mais três anos de ligação com a federação da Nova Zelândia) mas optou por seguir para Inglaterra, uma situação que despoletou uma pequena escaramuça e repreensão. Steve Hansen, selecionador da Nova Zelândia, afirmou que era "lamentável a saída de um jogador, principalmente porque" da parte da federação "houve comunicação" e da de Luatua, "não". Isto implica que Luatua deixe de ser elegível para alinhar pelos All Blacks em qualquer situação.

Para além disso, o equilíbrio financeiro, as boas práticas e as regras “sérias” levam a que até o amadorismo (que existe nas ligas secundárias) seja tão belo ou perfeito de tal forma que, na Nova Zelândia, só respira rugby… ou quase.

Adicionalmente, não esquecer que o rugby é uma modalidade instalada a nível escolar, afirmando-se nas escolas como o Desporto Rei da Nova Zelândia, nem tão pouco o marketing e a venda do produto “All Blacks”, por si só uma super marca a nível mundial (ainda que muitos dos que têm uma camisola, t-shirt ou polo dos All Blacks possam não saber, exatamente, do que se trata).

A soma destes “bens” possibilita que a seleção de rugby neozelandesa seja aquele “monstro” inacreditável, quase inultrapassável e incrível, que o Mundo veio e vem a conhecer desde sempre.

E esta é também a forma de proteger o rugby neozelandês, de não dar espaço a intromissões, propiciando a que os jogadores lutem para ser os melhores, não só na selecção, mas nos treinos, nos clubes e nas franquias.

Por tudo isto, os kiwis (alcunha dos habitantes da Nova Zelândia) são o produto de rugby mais apetecível a nível mundial: todos querem ter um jogador/técnico neozelandês.

Com a loucura geral que os All Blacks geraram desde os anos 90 ((muito além do público fiel ao rugby, tendo Lomu sido, mais uma vez, fundamental para tal), a selecção neozelandesa é, talvez, a par do Brasil (futebol), das equipas mais reconhecidas e com mais adeptos a nível mundial.

A comparação é feita de propósito… O Brasil (mesmo perdendo jogos) é o "Brasil", um ícone do desporto, uma das marcas que melhor se vende a nível mundial. Há um fascínio pela seleção de terras de Veracruz, é um símbolo do desporto, é a melhor forma de mostrar o futebol em estado puro, com aquele zigue zague e “brincadeira” que só os brasileiros sabem tão bem fazer.

A Nova Zelândia está assente na mesma lógica, noutra modalidade, não só pelo já enumerado, mas também pela sua capacidade de ganhar jogos e títulos.

Prova disso é que estamos em 2017 e a Nova Zelândia é tricampeã mundial e domina a modalidade, até nos prémios a nível individual, onde há 5 anos que tem o melhor jogador/treinador e equipa. No fundo, tem o Mundo do rugby a seus pés… Então, quem se atreve a fazer frente aos All Blacks?

British & Irish Lions, os candidatos a quebrar a hegemonia?

A resposta à pergunta poderá ter três palavras: British & Irish Lions, uma seleção que agrega os melhores jogadores (36, para sermos mais precisos) e técnicos das Ilhas Britânicas (Reino Unido e Irlanda), que se juntam (mais ou menos) a cada quatro anos para uma digressão ao Hemisfério Sul.

Ora, 2017 é ano da equipa composta pelos pelos melhores jogadores do Reino Unido e Irlanda fazer nova tour por terras neozelandesas e o jogo entre ambos os conjuntos poderá ser o maior encontro do século XXI a todos os níveis.

Imagine-se: em junho, teremos os 30 melhores jogadores do Mundo a alinhar dos dois lados, mais uns quantos suplentes de luxo, orientados por treinadores com várias honras de campeão ao peito. (Curiosamente — e daí talvez não... —, o seleccionador dos British&Irish Lions é… neozelandês.)

Os jogos entre Lions e as seleções do Hemisfério Sul foram, durante muito tempo, o grande momento do rugby mundial, já que o Mundial da modalidade só surgiu em 1987 (vitória da Nova Zelândia) e, portanto, até lá, era nas digressões dos vários países ou super nações que se faziam pequenos “mundiais”.

A primeira tour remonta a 1888 e foi precisamente na Austrália e Nova Zelândia que 21 homens partiram para jogar rugby. Na altura só faltavam as “irmãs” irlandesas para formar o atual composto dos Lions.

Contudo, os British & Irish Lions como hoje conhecemos só foram constituídos oficialmente após a 2.ª Grande Guerra. Até 1950, as federações (ou Unions no rugby) não tinham controlo sobre o selecionado; a partir dessa data, assumiram a direcção da "seleção" das Ilhas, onde já figuravam as Irlandas.

Nos 36 tours que já se realizaram, entre 1888 e 2013, a Nova Zelândia recebeu-os por 11 vezes e jogaram um total de 38 jogos. Quanto ao saldo, é claramente favorável aos kiwis: só por seis vezes os Lions conquistaram vitórias. De resto, 29 derrotas e 3 empates.

É sempre particularmente duro jogar contra os All Blacks em sua casa… Mais duro ainda quando, atualmente, do outro lado se encontram bicampeões mundiais de forma consecutiva, detentores (de forma partilhada) do recorde de vitórias consecutivas (18) e o produto mais apetecido no desporto mundial.

No entanto, 2017 será um ano bom para os Lions seguir em direção a terras kiwis. Os jogadores ingleses estão na sua melhor forma (são bicampeões das Seis Nações e ganharam outra maturação mental), os irlandeses têm uma capacidade física e energética de ponta, a Escócia (deixamos este nome para o tentarem seguir: Stuart Hogg) traz magia e o seu jogo fluído e o País de Gales proporciona um certo charme ao jogo que vai para além da mítica frase "três pontos para o País de Gales!".

Por isso, os Lions representam o momento de grande união entre federações das Ilhas Britânicas —contrastando, até, um pouco, com a situação política daquela zona da Europa —, onde a rivalidade das Seis Nações se desvanece para dar lugar ao companheirismo, solidariedade e partilha de histórias e ombros.

O passado de ambos vai mais para além do que um simples jogo

O último encontro entre Lions e All Blacks deu-se em 2005, quando a digressão durou um mês, com três jogos frente à Nova Zelândia, mais oito jogos frente a equipas locais.

Desses três jogos, houve um, em particular que foi, no mínimo, “chato” para as hostes dos Lions: Daniel Carter (médio de abertura, nº 10 na camisola e mítico dos All Blacks) marcou 33 dos 48 pontos da vitória dos neozelandeses frente aos britânicos.

Ainda hoje, este é considerado o jogo perfeito de um médio de abertura (o tal n.º 10, máximo responsável por criar jogo e movimentar as linhas de ataque) e, melhor que tudo, aconteceu numa digressão dos Lions.

E chegamos a 2017, 12 anos após o último encontro entre ambas as seleções. O rugby mudou, não muito, mas o suficiente. Está mais “aberto” para a sociedade, o número de espetadores cresceu amplamente (só a final do Mundial de 2015 foi vista por 120 milhões de pessoas), há mais países a apostar efetivamente na modalidade (veja-se a Alemanha ou o Quénia, por exemplo) e a época profissional atrai cada vez mais atletas.

Por isso, o jogo entre Lions e All Blacks será um produto precioso para os desígnios do rugby mundial, já que é o grande momento (não o único, mas o maior) da modalidade em 2017.

Se nunca assistiram à modalidade ou só a conhecem muito superficialmente, marquem nas agendas os dias 24 de Junho, 1 e 8 de Julho e vejam só os jogos (às 7:40 da manhã, hora portuguesa). Não precisam de saber nomes, clubes ou quem é quem, porque é extremamente fácil: os de negro são os All Blacks e os que usam o vermelho são os Lions. Vejam cada finta, cada placagem (a “lealdade” da modalidade não permite placagens acima dos ombros), cada ensaio (quando o jogador consegue tocar a bola dentro de uma área retangular onde estão dois postes) e cada jogada.

Para todos os outros que seguem a modalidade, são apaixonados pela mesma ou, simplesmente, estão no campo do fanatismo positivo, terão a oportunidade de ver George North versus Julian Savea, Beauden Barrett versus Owen Farrell (mesmo que não vá para n.º 10, será o pontapeador), James Haskell versus Sam Cane, Maro Itoje versus Ardie Savea, Stuart Hogg versus Israel Dagg, entre outros tantos duelos que vos farão perder horas de sono mas ganhar anos de plena loucura.

Fair Play é um projecto digital que se dedica à análise, opinião e acompanhamento de diversas ligas de futebol e de várias modalidades desportivas.

Francisco Isaac é editor de Rugby para o Fair Play, Rugby World Magazine e Portal do Rugby, e autor da rubrica The Rugby Lab.

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