É um zumbido. No final da expectativa, tudo se resume a isso – um zumbido. Começa leve e agudo, agrava à medida que se aproxima de nós e depois esvai-se; e cala-se. Daí a pouco torna a anunciar-se e tudo se repete. São vinte voltas, são vinte enxames de motas a rasgar o ar algarvio.

Uns atrás dos outros, encarreirados lá no seu objetivo, os pilotos pendulam com as motas, encolhidos sobre a máquina, concentrados, focados, apontados a uma só meta – e meta aqui nem é metáfora.

Às vezes caem. Levantam-se. Hesitam em ir buscar a mota. Reticentes. Se forem podem continuar a prova. Se forem podem ser colhidos por um dos outros vinte pilotos que passam a velocidades superiores aos trezentos quilómetros por hora: 300 km/h, mais de duas vezes a velocidade máxima permitida pela lei portuguesa nas estradas públicas.

A prova inaugural do Autódromo Internacional do Algarve, em Portimão, foi precisamente com uma etapa do Campeonato do Mundo de Superbike. Depois das enchentes do verão, o Algarve recebe mais uma prova internacional no autódromo que fica escondido entre montes, mais perto do rural que do turismo.

As bancadas, porém, não se encheram como os areais. Ainda assim, a prova vai continuar em Portimão pelo menos por mais dois anos, já que este foi o primeiro ano de um novo contrato de três, agora assinado. “Estamos a iniciar um novo contrato, estamos a trabalhar de uma nova forma com a organização, escolhemos uma data diferente, por isso vimos que tivemos esse impacto positivo, mas ainda temos muitas coisas para fazer", diz o diretor executivo da prova, Daniel Carrera, em entrevista ao SAPO24, no final da corrida.

A organização não ficou impressionada com o público, ou a falta dele. "O grande desafio é aumentar o número de espetadores no evento”, diz Carrera. "Não temos pilotos portugueses, o que é muito importante, mas já estamos a trabalhar nisso com a Federação Nacional, estão a planear ter uma representação na categoria Super Sport 300, que é a nossa categoria para iniciantes, e de certeza que ter um representante de Portugal vai ajudar no futuro", avança.

Faltam Grand Prix para o António não ficar chateado e para o Richard e o Roger não apanharem frio

Não vem totalmente animado. De mão dada com o pai, vieram de Lisboa para assistir a uma prova com menos entusiasmo que outras. Aliás, “muito menos”, diz Jorge Amarante no fim da primeira corrida de Superbikes do fim-de-semana. É que estes “são dois mundos completamente diferentes." Jorge esteve "em Jerez de La Frontera, [para a prova do Moto GP], em Espanha, e aquilo é um mundo mesmo alucinante. Lá é a sério e aqui é como se fosse uma amostra.” Porém, não desilude por completo.

E apesar de não haver pilotos portugueses a competir, há um que está presente na mesma e só por isso já vale a pena o António, de nove anos – os mesmo anos que tem o circuito algarvio –, ter vindo. “É a primeira vez que vem, ficou chateado por não o ter levado lá para o Moto GP, mas já conheceu o Miguel Oliveira e ficou todo contente”, explica o pai.

Horas antes, outros fãs. A cor do cabelo anuncia que serão bem mais velhos que o António. Sabemos, por isso, que quando dizem que há muito que são fãs de motas, estão a falar de bastante tempo. Ainda assim, o entusiasmo não esmorece e "tudo o que tenha a ver como motos é uma boa notícia" para estes dois que se empoleiram sobre as grades, no paddock, ainda antes da corrida principal, a ver as máquinas que dentro de um par de horas hão de rodar no circuito a alta velocidade.

Vêm de São Brás de Alportel, do outro lado da A2, mas a conversa não é num português de sotaque algarvio. Antes é em inglês, por ventura a segunda língua oficial da região. Richard e Robert acham que esta é uma pista fantástica, quase ali ao nível de Silverstone, "mas muito mais quente".

"Está bem organizada, bem desenhada. É uma pena que nunca tenham conseguido ter os Grands Prix [grandes provas] aqui", lamenta Roger. Mas "nunca se sabe, ainda há tempo, ainda há tempo", anima Richard.

Há uma festa portuguesa entre a sala de imprensa e os pneus

Avenida de Camiões. É uma enorme boulevard, ladeada por automóveis pesados que se erguem numa fila quase infinita no paddock. Nesta avenida, cortada a meio por uma praça onde nascem torres de pneus usados e por usar, os edifícios são camiões e respetivas caravanas.

Atrás, as boxes. Um frenesim a anteceder a prova. Há fatos ao sol, há um último cigarro. Há alguém que aspira um tapete.

Ali perto, quatro porcos vão rodando, sendo trinchados e enfiados dentro de carcaças. A fila alonga-se à sombra do edifício onde se localiza a sala de imprensa. As conversas em português podem ser raras, mas há indícios do país escondidos nos maiores pormenores. Seja a música, seja o pão.

Entre zumbidos, música. Depois dos zumbidos, aplausos. Miguel Oliveira, que não correu em Portimão, sobe ao palco. Uma breve apoteose, à sombra dos toldos, recebe o piloto português.

Não está calor no Algarve, mas o sol aperta. Onde há toldos há gente. Onde não há toldos há pneus. Dezenas, centenas. Deitados sobre marcações, códigos ininteligíveis a quem olhar para eles, escritos em pedaços de fita colada no alcatrão.

“No grip, no glory” – Se os pneus de Tigerman falharem, Hartog fica em sarilhos

Debaixo do sol portimonense, os pneus estão expostos. Quem passa aperta-os. São lisos; completamente lisos, polidos, anéis de borracha negra com o nome Diablo. “Têm o diablo no corpo”, diz um grupo de portugueses que, com a mão que não está a segurar a imperial, aperta a borracha.

Cada moto tem direito a sete pneus para o fim-de-semana. Quem no-lo explica é Tigerman, para quem “uns bons pneus e uma boa suspensão vêm antes da potência da moto”.

Tigerman, da equipa de Rob Hartog, que compete na categoria Super Sport, que também correu este fim-de-semana em Portimão, estava no paddock, junto do fornecedor de pneus, à espera de levar novos sapatos para a Kawasaki ZX-6R de Hartog.

“Todos os pilotos têm um contrato com a Dorna, que por sua vez tem um contrato com a Pirelli. Pagamos e podemos usar os pneus que eles trazem”, depois de tratar, “é claro, da papelada”.

Há três tipos de pneus - a, b ou c -, que podem ser conjugados para a frente ou para trás. Tipos esses que foram previamente selecionados pela Pirelli para as condições da pista algarvia, explica Tigerman.

"Para trás, por exemplo, hoje escolhemos um pneu não tão suave." Depois, com os treinos, é preciso afinar os detalhes, conversando com os pilotos, mecânicos e até com os engenheiros da Pirelli, que sugerem os melhores pneus para a sensação de que o piloto está à procura.

O alcatrão está perigoso, mas Rea ganha na mesma

Às 15:01, partiram. O ar era cortado, intermitentemente, pelo zumbir do enxame a subir, a descer, a subir, a descer, a subir e a descer cada encosta do circuito algarvio.

No media centre, o centro onde se juntam jornalistas de todo o mundo a acompanhar a prova, o ambiente era silencioso. Dezenas de ecrãs mostravam estatísticas, dados e imagens do que se passava a metros das enormes janelas que enchem a sala de luz. O que se passava nos computadores desses jornalistas já não sabemos.

Este repórter escrevia isto. Nos restantes, algumas dezenas, por entre imprensa especializada e outros, notava-se ou enfado ou atento acompanhamento. Sempre é complicado deslindar o que diz uma cara que nada diz. Podíamos perguntar, mas a notícia, adiante veremos, pode acontecer precisamente quando não estamos a olhar. Olhe-se, então.

De um lado e do outro passavam motas. O edifício para a comunicação social está no meio da pista (não no meio da estrada, caso contrário a fluidez da prova ficaria comprometida, entenda-se) e as motos passam mesmo ao lado. Velozes. Zás, passa uma, passa outra. Seguem outras tantas até terem passado todas. Dali a minutos, voltam.

Apesar de ser verão e de estarmos no Algarve, durante a prova, que durou uns certeiros 35 minutos, a temperatura do ar não chegou aos 24º C. A pista, por outro lado, tocava nos 40º C e o vento soprava com alguma força (a roçar os 24 km/h), o que atrapalhava o momento aos vinte pilotos a correr na categoria principal da prova.

O WorldSBK põe a correr motas quase iguais às de estrada. São permitidas algumas alterações, como no sistema de escape, na suspensão e nos travões, mas a génese é a estrada. A potência destas motas varia dos 750cc aos 1200cc, atingindo, na primeira corrida no Algarve, a velocidade máxima de 305,1 km/h (marca atingida por Chaz Davies, da Aruba.it Racing - Ducati, embora abaixo da volta de qualificação, onde alcançou os 305,9 km/h).

Na linha da meta, o britânico Jonathan Rea (Kawasaki Racing Team), que ganhou 11 das 20 corridas desta temporada, estava no lugar que fez cativo: o primeiro de todos. Fez os 91,840 quilómetros da prova em 34 minutos e 38 segundos. Seis segundos à frente do segundo, o também britânico Chaz Davies e dez segundos à frente de Marco Melandri (Aruba.it Racing - Ducati), italiano que acabou a primeira corrida em terceiro lugar.

O italiano não ficou contente. "Estava a tentar um melhor resultado, mas o terceiro lugar já é muito bom. Não foi uma corrida fácil, tivemos de mudar os pneus mesmo antes da prova"

Para além dos pneus, o Algarve traz também desafios: "A pista é fantástica, o traçado é um dos melhores, mas o alcatrão está muito mau, tem imensas lombas. Quando a pista não estava assim era incrível correr aqui, agora algumas curvas são até perigosas."

“É um bocado extremo”, acrescenta Davies. "Aqui há imensos altos. Dá para ver na televisão", diz o britânico que corre pela mesma equipa que Melandri.

Tudo contribui para “uma corrida dura”. Mas Rea tem a sua percentagem de culpa: “O Johnny tem sido fantástico”, diz. “Gostava de ter sido melhor na corrida, não fui capaz de atacar como gosto e por isso nunca senti que estava a tirar 100% de tudo. Estou feliz pelo resultado, mas desiludido por isso."

Jonathan Rea, por outro lado, não se desilude em Portimão. "É para mim um circuito forte há muitos anos”, conta o piloto da Kawasaki.

“A pista mudou ao longo dos anos, está muito mais deformada, por isso é um verdadeiro desafio conseguir boas colocações com a moto, mas a minha equipa tem sido incrível", disse o vencedor ao SAPO24.

A questão já está identificada: “É um problema. Ontem [sexta-feira, 15 de setembro] tivemos reuniões da comissão de segurança, discutimos a situação desta pista, o problema foi posto em cima da mesa, e esta manhã tive uma conversa com o diretor geral do autódromo, Paulo Pinheiro, que nos disse estar nos seus planos fazer uma intervenção na superfície da pista em dezembro", conta o diretor executivo da prova.

A faltar alguma coisa, faltam pessoas: "Infelizmente não havia muita gente na pista para ver a prova, mas as pessoas que aqui estão gostam mesmo de motociclismo, por isso adorei a paixão que têm, o país e o lugar, é um dos melhores do mundo, de certeza", diz Melandri.

Fechada num camião, há outra corrida ao lado da pista

Arrumadas as motas, a pista abre-se a outras provas. Provas de vida, de resistência gástrica, de superação de ansiedades e demais medos. Um capacete, um safety car e um jornalista sentado lá dentro. Três, dois, um e o rugir do motor treme como tremem os corpos que vão dentro daquele touro enguiçado.

Quinze curvas, montes com fartura. De repente, a prova que se via nos ecrãs, a corrida que se mostrava nas janelas, o trajeto que se admirava das bancadas, caía de frente, a cada metro milimetricamente engolido pelo carro de segurança que agora faz as vezes de carruagem de montanha russa.

Momentos antes, Benjamin Cobb, responsável pela comunicação da prova, afiançava: são profissionais. Os pilotos são pessoas treinadas e especializadas, preparadas para fazer isto de olhos fechados. É pôr o capacete e seguir - esperando que o piloto não decida efetivamente fechar os olhos.

Quatro mil quinhentos e noventa e dois metros depois, feitos em coisa de dois minutos, o carro travava com força na linha de meta. Naquela mesma linha onde, minutos antes o britânico Jonathan Rea chegava em primeiro.

Serve a volta à pista para perceber que prova é esta. Mas há uma outra corrida, paralela, a acontecer em Portimão. Fechada num atrelado, há uma equipa sentada não em duas rodas, mas em cinco – as que têm as cadeiras de escritório da régie onde a transmissão é coordenada.

Se alguém cair, há um catalão em cima do assunto

David Arroyo é o media director, o responsável pela coordenação dos produtos audiovisuais que saem da WorldSBK. Dentro do camião, fica especado a olhar para televisões. Quantas? "Imensas. Podemos ir contar, porque nem sequer sei. O realizador está basicamente a olhar para todas as câmaras". E quantas câmaras são? 19 na pista, três em motas e outras três ao ombro a fazer reportagem, mais uma na pit lane.

O realizador "está a olhar para o ecrã principal e para a câmara para onde quer passar a emissão". Na verdade, é um assistente quem olha para mais ecrãs e um outro olha para as câmaras de ombro "e grita se alguma coisa especial estiver a acontecer".

Com duas dezenas de motas a mais de 300 km/h, como se escolhe o que são "coisas especiais"? "Com os seus critérios, não há dois realizadores iguais e todas as corridas são diferentes”, explica David Arroyo.

“Os critérios do realizador são em primeiro lugar editoriais e depois há critérios de patrocínio, fabricantes, necessidade de mostrar um piloto em vez de outro”, por exemplo. “Se estivermos em Portugal temos de mostrar mais os pilotos portugueses – embora não haja pilotos portugueses – se estivermos a dizer que o Jonathan Rea vai para outra equipa vamos estar também a mostrar estas confrontações. E claro, há aspetos políticos, há um compromisso para tentar mostrar todas as equipas e fabricantes o mais possível."

Há, então, duas corridas: a que acontece na pista e a que o realizador escolhe mostrar? "Estamos aqui para mostrar o vencedor, quem está no pódio. Se não houver um confronto direto, como aconteceu hoje, tentamos mostrar a batalha que estiver mais à frente, sempre lembrando, quem está a liderar, quem está em segundo e quem está em terceiro", explica David.

Quando acontecem coisas extraordinárias, há regras extraordinárias. "Temos um protocolo. Todos sabem o que têm de fazer. Em primeiro temos de saber se o piloto está bem. Se, por exemplo, foi contra o muro ou ou se a moto foi contra ele", há que averiguar. "Se estiver bem, podemos mostrar uma repetição; se o piloto não tiver ficado bem, vamos sempre protegê-lo e vamos tentar ser o mais éticos possível”, explica o catalão.

"Depois, quando o piloto estiver bem, vemos se estamos em direto, se não estamos. Se não estivermos em direto, como aconteceu hoje, vamos tentar distribuir isto aos nossos parceiros, porque eles estão cegos, vamos tentar enviar este vídeo através da nossa ferramenta de retransmissão, depois de informarmos o departamento de vendas de audiovisuais"

Por vezes, porém, apesar das 26 câmaras, há coisas que não ficam gravadas. "Se a câmara estiver a fazer uma panorâmica e um acidente acontece fora do campo de visão, o realizador vai perdê-lo. É bastante frustrante”

Para evitar ao máximo a hipótese de isso acontecer, “no final da reta principal temos duas ou três câmaras, o que significa que nos hotspots [pontos principais] duplicamos as câmaras. Se o primeiro operador está a seguir o primeiro piloto, o segundo vai estar a assegurar o segundo grupo. Mas há sempre um pouco de sorte".

Arroyo está pelo terceiro ano a trabalhar com a WorldSBK. Antes estava no MotoGP. É um apaixonado pelo desporto motorizado, algo que dá jeito para fazer o que faz. Isso e trocar de papéis: "De vez em quando tentamos trocar de cadeiras, fazer o trabalho que o nosso colega do lado está a fazer para quando estiver a fazer o meu trabalho poder saber como o posso ajudar."

Porque no fim, apesar de as motas só terem duas rodas e um piloto, é precisa uma equipa inteira para fazer de um zumbido um modo de vida.

* Os jornalistas viajaram a convite do Eurosport