O desafio surgiu-lhe pela voz de um amigo e colega de profissão, o jornalista Pedro Romano. Diogo pensou que fosse uma “piada”… Não era. O convite formal teve lugar no início de 2017 e em seis meses o livro chegou às bancas. Caixa Negra foi escrito enquanto uma comissão de inquérito - altamente politizada - se debruçava sobre a gestão do banco público nos últimos 17 anos, e enquanto uma segunda comissão era constituída para analisar o papel do Executivo na nomeação e na (atribulada) saída de António Domingues. Foi redigido enquanto na Justiça correm processos e o Tribunal da Relação determinou o levantamento do sigilo bancário, nomeadamente a divulgação da lista dos maiores credores da Caixa Geral Depósitos (CGD ou, simplesmente, Caixa). Foi tecido enquanto Paulo Macedo fazia as primeiras intervenções públicas para falar de um banco em reestruturação e enquanto populares se barricavam numa dependência da instituição em Almeida, trazendo mais uma vez a lume a discussão sobre o papel de um banco público. Aguardam-se ainda as conclusões de uma auditoria independente a atos de gestão da CGD desde 2000 até 2015 pedida pelo Ministério das Finanças à consultora EY. Esta não é uma Caixa Negra ou uma ‘fita do tempo’ estanque, o relato último da tragédia, é antes uma narrativa em construção, de uma instituição, de um organismo, que evolui e que, como Diogo Cavaleiro cedo alerta, “é mais do que um banco”.

Ao longo de 260 páginas, o jornalista de economia que acompanha o setor da banca, propõe-se responder a três questões: O que aconteceu nos últimos 17 anos na CGD? Como é que a Caixa ditou o destino das grandes empresas nacionais? Como é que o acionista Estado convive com o banco público?

No caminho para estas respostas, é inevitável abordar o “fantasma” constante da privatização, mergulhar nos negócios ruinosos da Caixa, questionar a relação entre o banco, o seu único acionista (o Estado), e o representante do acionista (o Governo) que, em regra, muda de quatro em quatro anos. Olhando em frente, o escritor vê uma instituição que pagou caro ser “mais do que um banco” tradicional e que hoje está a aprender a deixar de ser um império.

Factos. Nunca expressas a tua opinião neste livro…

É propositado. A ideia era perceber em que é que a Caixa se meteu para precisar de tanto dinheiro [o Estado colocou no banco público 7,85 mil milhões de euros em 17 anos]. A Caixa sempre teve a privatização em cima dela, teve muitas participações financeiras [ou seja, possuía parte do capital de outras empresas], sempre precisou de colocar dinheiro de parte por conta de imparidades [valor investido e que se considera potencialmente irrecuperável] relacionadas com as participações financeiras. Achei interessante fazer esse caminho sem dar a minha opinião, as pessoas podem depois tirar as suas conclusões. Não cabe ao jornalista fazer esse trabalho de atribuição de responsabilidades. Tens a Justiça a fazer as suas investigações, no Parlamento correm duas comissões de inquérito para apurar responsabilidades políticas. O trabalho do jornalista, como eu o entendo, é de relatar o que aconteceu.

Porquê analisar 17 anos de CGD?

O grosso da informação é referente a 2004/2005, mas as oscilações estratégicas vêm desde 2000. Optei por este período também porque queria perceber a ligação entre um banco que tem o Estado como acionista e o Governo como representante do acionista. Pegando num período alargado podia fazer este caminho com várias administrações da CGD e vários Governos. Além disso, este período é também o âmbito da análise da comissão de inquérito sobre a gestão do banco público nos últimos 17 anos.

Falando em comissões de inquérito. São um instrumento útil?

A segunda comissão de inquérito à Caixa [que se debruça sobre a nomeação e a polémica saída de António Domingues ] já não acompanhei como jornalista. Seria a minha quinta comissão de inquérito em quatro anos. Acho que as comissões de inquérito são um instrumento importante para que exista projeção pública de factos de que outra forma dificilmente se saberiam. Ali tens ex-administradores ou pessoas que tiveram responsabilidade política sobre aquele objeto, neste caso a CGD, e que dificilmente poderiam falar noutro âmbito. Existem as investigações judiciais, mas aí não tens acesso à informação.

 "A privatização é um fantasma que existe e que acho que vai continuar a existir."

Mas para as pessoas comuns, para quem não é jornalista…

Acho que a generalidade das pessoas não está a acompanhar as comissões, mas quando tens interesse podes fazê-lo, depende do interesse de cada um. Mas é algo que tem de acontecer. Parece-me muito importante que na Assembleia da República, que está lá para fiscalizar atos do Governo, possa existir um acompanhamento deste género, não só do ponto de vista da atuação do Governo mas também para apurar a forma como estas empresas [no caso, a CGD] contribuem para evolução da sociedade portuguesa.

créditos: MadreMedia | Pedro Marques

Voltemos ao livro, quais eram os teus maiores receios?

Achava inicialmente que o complicado seria falar com algumas pessoas, uma vez que estava em curso uma comissão de inquérito [a que visava os atos de gestão desde 2000], ainda por cima super politizada. Mas isso acabou por não se revelar a questão mais difícil. O complicado é organizar as ideias. Eu não quis fazer uma coisa cronológica, achei que ficaria reduzido, até demasiado institucional. Por outro lado, é um tema denso, portanto tentei arrancar sempre com algo que agarrasse as pessoas. Por exemplo, ao abordar o caso de Vale do Lobo começo por falar nas férias do Ronaldo.

É com o tema da privatização que arrancas esta Caixa Negra. Continua a ser uma questão?

Acho que existiram períodos, nomeadamente durante a Troika [composta pelo Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu], em que efetivamente poderia ter acontecido [a privatização], apesar de não ser uma ideia consensual no Parlamento. A privatização é um fantasma que existe e que acho que vai continuar a existir. Mas acho que hoje em dia já se percebeu, e a própria administração do banco o diz, que a Caixa tem de ser um banco como os outros, não tem de estar em sítios [negócios] que os outros não estão. Aliás, logo aí tens uma postura que levanta dúvidas - e vários partidos o têm feito - sobre o papel da Caixa enquanto banco público. Depois, uma coisa coisa é o que o parlamento acha e outra é o que dita o enquadramento europeu.

"Acho é que têm havido demasiadas discussões sobre o que é que a Caixa deve ser."

Achas que a Caixa seria melhor gerida se não fosse um banco público?

Não faço ideia. Acho que não tem a ver com uma questão de gestão mas de acionistas. É isso, aliás, que dizem as entidades europeias. O que interessa ao Banco Central Europeu (BCE) não é saber de a Caixa é pública ou privada, é saber se os acionistas que lá estão [neste momento o único acionista é o Estado] têm capacidade para injetar dinheiro na instituição se esta precisar. Se um banco estiver em dificuldades precisa de capital e os acionistas têm de ter a capacidade de fazer essa injeção de dinheiro. Num Estado português endividado essa capacidade é menor. No entanto, a procura de outros investidores para a Caixa acabou por não acontecer.

É preciso trazer de novo para discussão o que a Caixa deve ser enquanto banco público?

Acho é que têm havido demasiadas discussões sobre o que é que a Caixa deve ser. O que não se fez ainda é avaliar se o que foi definido como orientação estratégica é cumprido. O Estado é um acionista cujo representante muda, em regra, a cada quatro anos. O que tem acontecido é que essa mudança é precedida de uma alteração da administração da Caixa e aí levanta-se a questão: mudou a estratégia do que deve ser a Caixa ou não? Portanto, acho que há uma instabilidade acionista a considerar, e daí também o BCE, mesmo não o dizendo diretamente, apostar na privatização, em trazer novos acionistas para dentro do banco.

"Acho que há erros e má avaliação. O livro tenta mostrar o que aconteceu. Apurar o que motivou estes investimentos [ruinosos] cabe à Justiça."

Ser um banco público, mas cada vez mais parecido com um banco comercial privado…

Acho que o grande desafio para a atual administração [de Paulo Macedo] é precisamente esse: ter um banco que tem de reduzir tantos balcões e trabalhadores como os outros, que tem de gerar negócio, que tem de ser rentável como os outros. É isso que está assumido e foi a isso que a caixa de comprometeu. O grande desafio é como, neste enquadramento, Caixa se vai diferenciar dos restantes bancos para justificar essa manutenção em mãos públicas, essa atribuição de serviço público que os outros bancos não têm.

No teu livro referes uma série de negócios ruinosos da Caixa. Se não existiu ingerência política - como asseguram ex-administradores e responsáveis políticos - o que justificou esses negócios. Tivemos maus gestores à frente do banco público?

A conclusão preliminar da comissão de inquérito que analisa os últimos 17 anos de gestão do banco público [conhecida no início deste mês de julho] aponta para erros de análise, erros de projeção, para uma crise financeira mais profunda do que o inicialmente antecipado. Acho que havia outra questão em cima da mesa - e que se reflete num dos pilares de gestão assumido agora por Paulo Macedo e que se prende com a alteração da forma como é analisado o risco e a concessão de crédito - que era a avaliação deficiente do risco. Há ainda uma outra coisa, não apenas imputável à Caixa, que foi a existência de um período em que o próprio Governo favorecia obras públicas [durante o Governo de José Sócrates], havendo aí maior propensão para determinado tipo de financiamentos. Depois, há que considerar também o envolvimento da Caixa em processos de capital de risco que colocaram em causa demasiado dinheiro. Perdas num desses projetos eram equivalentes a milhares de pequenas e médias empresas. Acho que há erros e má avaliação. O livro tenta mostrar o que aconteceu. Apurar o que motivou estes investimentos [ruinosos] cabe à Justiça. Falar de Vale do Lobo é mais fácil porque é um processo ao qual se teve mais acesso a informação, mas há outros financiamentos da Caixa que causam perplexidade e acho que é importante levantar essas questões.

"A resposta a porque é que os créditos concedidos pela Caixa correram mal ainda não foi dada, ainda não se sabe o que correu mal nos procedimentos do banco."

Se a Caixa não fosse um banco público arriscava menos?

Não sei, outros bancos também arriscaram. Acho que não é uma questão de acionista [o Estado], se bem que pode ter influência. Imaginemos um grande projeto em que o Governo assume como seu. Os bancos privados podem dizer que não ao projeto, assim como o banco público. No entanto, até que ponto um banco que tem o Estado como acionista, cujo representante é o Governo, se sente à vontade para dizer que não? É uma questão que se levanta…

créditos: MadreMedia | Pedro Marques

Terá mais liberdade agora, depois de tantos negócios ruinosos?

Terá sempre a ideia, mais discutida e mais incutida, da necessidade de avaliar o risco de crédito e evitar a captura de gestores pelo acionista. Há um maior estado de alerta e isso pode ajudar.

"Ninguém que tenha estado na administração ou na presidência da CGD ficou pior por isso"

Há um capítulo que senti falta nesta Caixa Negra, um capítulo sobre prestação de contas no banco público.

A Caixa, como outros bancos, tem de publicar o relatório e contas e aí já existe muita informação sobre o que se passa. Há pessoas que defendem que no caso de projetos que tenham relevância estratégica ou sejam promovidos pelo Estado deve existir uma avaliação parlamentar, uma vez o parlamento é eleito pelos portugueses, até por uma questão de responsabilização. Mas depois tens outra questão que é: assim, quem é que quer ser cliente da Caixa? O cliente pode até pagar um pouco mais noutro banco, mas não tem tanta exposição e não está sujeito ao escrutínio parlamentar. Acho que é um limbo a forma como a monitorização da caixa deve ser feita, algo que ainda tem ainda de ser definido.

É por isso que não tem um capítulo?

Exato. Na conclusão falo precisamente da ideia de que a Caixa está a aprender a deixar de ser um império - depois de ter tido várias participações financeiras, de ter inclusivamente gerido outro banco - e está também a aprender uma nova de relacionamento com o acionista Estado e, em consequência com a parte política. E, também, uma nova forma de evitar erros, porque acho que têm acontecido demasiados erros numa só instituição, e aí estou a basear-me em factos. A Caixa tem de aprender a evitar esses erros. A resposta a porque é que os créditos concedidos pela Caixa correram mal ainda não foi dada, ainda não se sabe o que correu mal dos procedimentos no banco. Se por um lado tanto o banco como o Ministério das Finanças consideram prejudicial o levantamento do sigilo bancário, também percebo que os portugueses têm direito a saber porque é que têm de meter dinheiro na Caixa. Sim, houve uma crise mais intensa do que o inicialmente esperado - e isso vê-se nas projeções da Troika - mas os bancos têm departamentos de estatística e de economia para analisar o que pode vir a acontecer, e os créditos são dados com base em projeções. O que falta perceber, pelo menos na parte da concessão de crédito - que não é tudo, mas é uma parte relevante -, é o que correu mal e o que poderia ter sido diferente para que a Caixa não estivesse exposta a tantas perdas.

"Não sei se Paulo Macedo seria uma escolha tão consensual se Bloco e PCP não estivessem neste Governo"

Com comissões de inquérito, auditorias, casos em tribunal. Ser presidente da Caixa é cadastro?

Eu acho que não, honestamente acho que não. Acho que ninguém que tenha estado na administração ou na presidência da CGD ficou pior por isso. Não acabou com a carreira de ninguém. Olhando para os últimos anos… Fernando Faria de Oliveira é o atual presidente a Associação Portuguesa de Bancos, José de Matos está no Banco de Portugal, onde foi vice-governador e é presidente de várias empresas de que o Banco de Portugal é acionista, António Domigues voltou a ser administrador da NOS e agora também está no Banco de Fomento Angola (BFA). Acho que deve um trabalho muito complicado, mesmo em termos de gestão mediática. Pode ser pesado, porque são anos em que todos os dias se está na imprensa, mas não vejo como cadastro.

Paulo Macedo foi uma escolha consensual para a presidência da Caixa…

Não sei se Paulo Macedo seria uma escolha tão consensual - um ministro da Saúde de um Governo PSD/CDS, bastante contestado no cargo pela Esquerda - se Bloco e PCP não estivessem neste Governo. Não sei se seria uma entrada tão suave.

"O Estado que entra hoje na Caixa é completamente diferente do Estado acionista que já estava na Caixa"

Há um contexto…

A Caixa estava numa situação tão delicada há tanto tempo [com a necessidade de reforço de capital e a polémica nomeação e saída de António Domingues] que ter os dois partidos a criar uma situação que pudesse fragilizar mais a Caixa, sobretudo partidos que querem manter o banco público sabendo que essa não é a preferência das instituições europeias… havia também uma gestão política que tinha de se fazer.

Porque chamar a este livro Caixa Negra?

A ideia não foi minha. Inicialmente até rejeitei, mas acho que é precisamente isso que faço neste livro. Um registo do que conduziu a Caixa a esta situação, em que tem de ser amparada com dinheiro do Estado. Há uma ideia que acho que as pessoas não percebem: o Estado que entra hoje na Caixa é completamente diferente do Estado acionista que já estava na Caixa. Explico: se o Estado de hoje fosse um acionista privado, com esta capitalização o Estado “antigo” ficava quase sem nada. O dinheiro injetado é tanto que o “novo” acionista Estado dilui completamente a posição do acionista Estado anterior.

Podemos considerar isto um resgate? A Caixa foi resgatada pelo Estado?

[Risos] Não, porque o Estado fez um reforço de posição, o Estado é o novo e o anterior acionista. Eu não diria resgate, é uma palavra com uma carga demasiado negativa. A ideia aqui é que o Estado assegura a sua posição de acionista na Caixa. Se fosse de facto um acionista externo seria diferente. Mas há uma ideia importante a reter: o Estado antigo acionista falhou porque foi necessária a entrada de um “novo” acionista para se cumprirem os rácios exigidos.

créditos: MadreMedia | Pedro Marques

Achas que as pessoas são mais tolerantes pela Caixa ser um banco público?

Acho que até são menos. Acho que depende sempre das explicações que são dadas. A explicação do Governo é que de é preciso tanto dinheiro porque só assim podemos manter o banco público. Há que referir que também há demasiadas decisões que são tomadas externamente, na Comissão Europeia e no BCE, entidades que não estão dispostas a responder aos eleitos pelos portugueses, o que dificulta a obtenção de respostas. Tudo [no que respeita à atual estratégia da Caixa] foi negociado em Bruxelas e Frankfurt.

Como será a Caixa dos próximos anos?

A Caixa dos próximos anos é uma Caixa a centrar-se na atividade bancária propriamente dita. Acho que é um projeto difícil.

Vais fazer o lançamento do teu livro, o teu primeiro livro, na Ler Devagar, na LX Factory, em Lisboa, hoje, dia 12, às 21h30. Estás nervoso?

Um bocadinho, mas acho que é normal. Pelo menos a receção das pessoas até agora está a ser positiva [risos]

Título: Caixa Negra

Autor: Diogo Cavaleiro

Editora: Oficina do Livro