Diria que, entre uma dezena de preceitos importantes para se fazer um bom eggnog, há 4 indispensáveis. 3 são de ordem técnica e o restante de uma ordem que não sei classificar, talvez psicotécnica. A saber:

- Os preparados que se misturam para concluir o eggnog devem estar frios.

- As claras batidas em castelo, como em quase todas as receitas cruas, devem ser envolvidas (não batidas) nos restantes cremes para o resultado final se manter leve e fofo.

- Por muito que se aromatize com um pouco de rum, a bebida alcoólica dominante deve ser bourbon. A única excepção utilizável são aqueles whiskies do Tennessee que, sendo efectivamente bourbons, rejeitam essa classificação.

- Apesar de falarmos duma iguaria que não nos é típica, é possível evitar os pânicos de aculturação. Basta não chamarmos nutmeg à noz-moscada (com que se finaliza o eggnog) para bebermos sem qualquer enjoo.

Também consigo avançar umas dicas para impedir as gemas de talhar na aletria, onde encontrar os melhores sonhos em Lisboa ou qual o vinho indicado para acompanhar bacalhau cozido. Optei pelo eggnog, bebida natalícia menos característica, para reduzir a probabilidade de aparecerem entendidos a corrigir-me. A verdade é que não sou estranho às tradições de Dezembro, não me desajeito na cozinha e ando bastante decidido e objectivo a elaborar listas de compras. É noutras listas da quadra que não consigo equiparar o desenrascanço.

Já na semana passada a minha intenção de enumerar os melhores do ano foi interrompida por soluços violentos. Acontece que a relutância em listar preferências não é assim tão circunstancial, mas mais intrínseca. A perspectiva de me esquecer de alguma coisa que merecesse integrar uma selecção final, mesmo que fosse na lista de melhores croissants com amêndoas de 2016, deixa-me o esgar de pânico da mãe do Macaulay Culkin quando se apercebe que deixou o filho sozinho em casa, no filme com esse nome.

No dia de Natal, ao regressar a Lisboa gerou-se no carro uma conversa sobre as canções preferidas de sempre. Perante a facilidade com que a minha mulher ia enumerando algumas do seu top 10, e a minha incapacidade de dizer uma que fosse, fiquei simbolicamente boquiaberto (ou literalmente boquiaberto, que em Dezembro costumo andar de nariz entupido). Se o assunto forem filmes ou livros, a minha paralisia é a mesma. Nem este penumbroso 2016 conseguiu varrer-me a aura de “escolha de Sofia” na tarefa de inventariar preferências. Face a essa cobardia – a de me comprometer com o que mais aprecio - a solução passará por uma lista onde o gosto não é o único factor determinante.

O que me proponho de seguida é enumerar 10 personalidades (vivas!) de 2016. Algumas são as mais importantes, outras são as mais importantes no instante em que escrevo; de algumas gosto, outras odeio, outras avizinham-se indiferentes. E para atestar que são marcantes, não vou meditar sequer no assunto, e passo a confiar que pela própria marca elas me surgirão imediatamente. Não haverá qualquer remorso mccallisteriano (relativo a Kate McCallister, a mãe do Sozinho em Casa, que faria parte desta minha lista em 1990). Sem uma ordem hierárquica evidente, aqui vai:

Trump – Começar pelo óbvio. 2016 não foi um ano discreto, por isso coroar o rei da indiscrição como figura de proa deste ano não me parece nada descabido. No segundo texto que por aqui escrevi sobre ele, ainda desconhecendo o resultado das eleições, tive uma crise de optimismo que me fez concluir que nem Trump terá capacidade para acabar com o mundo; se acreditasse no poder das figas, já tinha os dedos roxos de tanto os cruzar

Erdoğan – O presidente turco saiu politicamente reforçado em 2016, logo gostava de lhe dar mérito, mas desconheço qual o melhor ângulo. Resistiu a um golpe de estado muito mal planeado, e isso não é assim tão meritório... a não ser que tenha planeado muito bem um golpe de estado mal planeado. Más línguas? Se há coisa que um presidente reforçado num país de liberdades enfraquecidas merece são más línguas.

Donald Glover – Para desenjoar de aparentes vilões, e para restituir o bom nome aos Donald, eis um dos meus heróis de 2016. Não só autor da série de TV cuja escrita mais me entusiasmou (a magnífica “Atlanta”, comédia em que Glover é protagonista, argumentista, produtor e ocasionalmente realizador ), com o seu alter-ego Childish Gambino ainda nos trouxe um dos melhores discos de hip hop do ano, “Awaken, My Love!”.

Clint Eastwood – É um desbocado, precisamente numa era em que não se pode ser desbocado: é disto que ele se queixa, é disto que os seus detractores se queixam - desta sintonia ninguém fala. Enquanto era um proto-Ricardo Araújo Pereira a incendiar redes sociais, lançou um filme de que gosto muito, sobretudo por fazer-se passar por filme morno. Adoro esta pedantice de gostar genuinamente de filmes que parecem mornos.  

Nigel Farage – Isto não tem qualquer interesse, mas achei curioso como os dois arautos do Brexit, Nigel Farage e Boris Johnson, têm nomes que sugerem as suas compleições físicas. Nigel, esguio como um Nigel, asténico como um Farage. Boris Johnson, roliço como as vogais que o compõe, como o formato das bocas que pronunciam o seu nome. Não é isto que interessa. Farage é o rosto do Brexit e poderá ser historicamente conhecido como o derrubador do primeiro de muitos dominós gigantes. Nada mal para um Nigel.

Hillary Clinton – Desde o Dick Dastardly das Wacky Races que não torcia por um vilão. Já devia saber que, tal como o Dastardly, os vilões por quem torço perdem corridas – ainda que o vencedor também não tenha sido um dos good guys. Se era para correr tão mal, ao menos que nos tivesse sossegado o riso asmático do cão Muttley, talvez a alçar a pata na sala Oval.  

Lima Duarte – Não vi o Lima Duarte de 2016, mas 2016 trouxe-me muito Lima Duarte. Duas reposições, que dificilmente poderiam ser mais distantes, devolveram o actor brasileiro aos olhos dos portugueses: “O Rio do Ouro” filme superior de 1998, do superior Paulo Rocha, regressou a algumas salas de cinema nacionais, permitindo-nos ver Lima a brilhar ao lado da incomparável (eu sei que abuso de adjectivos, mas este é mais do que sentido) Isabel Ruth; já o canal Globo em Portugal decidiu repor a (provavelmente) melhor telenovela de sempre, “Roque Santeiro”, onde Lima Duarte encarnou a (provavelmente) melhor personagem de telenovela de sempre, o Sinhozinho Malta. Duas obras de ficção absurdamente diferentes que se interceptam num dos maiores actores da língua portuguesa. Lima Duarte tem 86 anos, vamos entesourá-lo enquanto cá anda.

Elza Soares -  Já que estamos a falar de brasileiros, e em tesouros, esta senhora chega disparada à minha cabeça. Um disco genial (que é de 2015 mas só o ouvi este ano), “A Mulher do Fim do Mundo”, era o suficiente para avivarmos a nossa memória desta grande cantora, mas ainda sobram os concertos que anda a dar. Justiça seja feita: este destaque vai para ela e para os músicos que a acompanham, em disco e concerto. Lembram-se quando vos confessei a dificuldade em fazer tops absolutos das minhas preferências? Elza, sentadinha, a levar e a ser levada pela sua banda, simplificou-me a tarefa: o espectáculo que deram no Coliseu dos Recreios entrou inquestionavelmente para o top 10 dos melhores concertos que vi.

Simone Biles – O prodígio dos últimos Jogos Olímpicos foi particularmente prodigioso no televisor em que assisti às suas prestações. Numa casa de férias remota, simultaneamente na praia e no pinhal, a TDT estava constantemente com a imagem congelada. Da Simone Biles assisti à rapidez, mestria e graciosidade dos exercícios, mas também a vi suspensa no ar por largos minutos. Prodigioso e exasperante.

Éder – Um dos filmes que estaria naquele top 500 que me recuso a elaborar é o “Jack Burton Nas Garras do Mandarim” do John Carpenter. Jack Burton apenas praticamente no fim da história é que contribui para a acção. Só naqueles segundos decisivos é que não é trapalhão; é produtivo, frio, certeiro e inesperado. Contas feitas, ninguém duvida qual o herói a celebrar. Obrigado, Éder.  

10 nomes de rajada e já me apercebo dos que ficaram de fora sem querer. Dylan, Putin e outros imperdoáveis. Para o bem e para o mal, 2017 ainda vai ser deles. Gente com poder. Espero que nos envolvam com jeitinho no futuro. Como às claras batidas em castelo.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS, E O RESTO

Ainda não tenho grandes dados sobre 2017, mas é a minha recomendação única desta semana. Espero ver-vos ou saber-vos por lá. Seria bom sinal.