O caso vem apimentar o impasse num mundo a viver a realidade trumpiana: se é trumpiano não parece realidade. Apesar de tanta unhada que se avizinha, continuamos incrédulos a pedir que nos belisquem.

Nesta história que envolve o filho do presidente dos E.U.A., até a ironia  parece metida a ferros para uma óbvia lição de moral, ou um castigo poético. Não é fina ironia, é apenas ironia electrónica: depois duma campanha eleitoral em que Donald Trump muito alardeou com o escândalo dos emails de Hillary Clinton, chega agora o potencial maior escândalo da campanha de Trump, e consequentemente da sua presidência, também através de emails.

Após suspeições lançadas numa série de artigos do New York Times, Donald Trump Junior acabou por admitir ter-se reunido com uma advogada russa no Verão do ano passado. O objectivo da reunião era receber informações incriminatórias sobre Hillary Clinton, dados esses que viriam do Kremlin. Assim se presume o esforço de Putin em auxiliar a campanha presidencial de Donald Trump, pai. A admissão desta reunião, por parte de Donald Trump Junior, foi feita através do Twitter (quem sai aos seus...) onde publicou toda a corrente de emails que manteve com Rob Goldstone, o homem que preparou a reunião com a tal advogada.

Se este roteiro, só até aqui, já faz justiça ao entaramelado televisivo da realidade trumpiana, ainda mais fará se pormenorizarmos o envolvimento de Rob Goldstone. Quando abordou Donald Junior uma primeira vez, Goldstone fê-lo em nome do azeri Emin Agalarov (de quem é promotor). Ora, Emin é cantor e uma estrela pop na Rússia, o que parece ideal para fundamentar a minha percepção de série manhosa de TV nisto tudo. Se foi Emin a requerer a reunião entre o filho de Trump e a advogada russa, terá sido o pai de Emin a receber do Kremlin as informações comprometedoras sobre Hillary Clinton. Aras Agalarov, pai da estrela pop e homem próximo de Putin, teve o primeiro contacto com os Trump quando trabalhou com Donald (pai) para levar até à Rússia o concurso de Miss Universo – se isto não tem laivos do mais ambicioso episódio do Barco do Amor (ancorado algures entre o Hudson e o Volga), eu não sei nada.

Junior revelou publicamente os emails numa jogada de antecipação que, segundo ele, teve como objectivo único a transparência. Acrescentou ainda que, sabendo o que sabe hoje, não teria feito as coisas da mesma forma. Parece um tipo de humildade raro de se encontrar num Donald Trump, mesmo que Junior. Pode é dar-se o caso desta humildade ser apenas o aprimorar genético da sobranceria do pai. No fundo (e perdoem-me o cinismo), a atitude de pôr tudo às claras não difere muito da soberba e narcisismo com que Trump sénior fala e age. Onde, no filho, se vê sinceridade e abertura para colaborar, pode também suspeitar-se do velho gene da impunidade a accionar meios mais subtis. A presunção de inocência que nos é exigida fica mais tolhida quando, do outro lado, está uma família que sempre se auto-presume de intocabilidade.

Apesar disto parecer apenas mais um episódio nesta bem real ficção presidencial, escolhi escrever sobre ele (mesmo numa semana em que Portugal está com alvoroço político, tensão racial, cinofilia militar e saudosismo futebolístico) já que me parece ser determinante para o futuro da presidência Trump e sintomático duma nova (des)ordem mundial. Primeiro porque, no meio de tantos escândalos, este dificilmente será enterrado entre os demais faits divers. É tanto uma prova como um detonador para a fragilidade interna da presidência republicana de Trump: demonstra que existem fugas de informação dentro dum núcleo próximo da Casa Branca que se julgava blindado e, ainda para mais, é o escândalo perfeito para os detractores de Donald Trump no seio do Partido Republicano. A subserviência às intenções russas (quase escrevia “soviéticas” de tão anacrónico e televisivo que isto me parece) nunca será tida de ânimo leve, ainda menos nos meandros conservadores norte-americanos. Não é à toa que “crime de traição” – talvez o mais grave de todos os crimes – já seja uma hipótese que paira na imprensa para o delito de Donald Trump Junior. Chamem o mob lawyer!

A questão russa é, possivelmente, o pedação submerso do iceberg neste assunto. A interferência do Kremlin nas eleições americanas, mesmo que não prove o apoio governamental russo aos hackers, deixa a dúvida longe de se dissipar. O que fica cada vez mais claro é o estatuto de Putin enquanto hábil titereiro global, posição que atira Donald Trump para um nada honroso papel de fantoche. Ninguém duvida da matreirice putiniana, e só os saudosistas da Cortina de Ferro recusam ver a vilania dos intentos e dos métodos de Vladimir (se eu voltasse à ladainha das séries dos anos 80, haveria mais característico nome de vilão?). Parecem claros os objectivos imperialistas russos, o restabelecimento da superpotência esmagadora e o expansionismo implacável. Alguns métodos é que ficam por descortinar, mas se passarem pela confusão e degradação do Ocidente, haverá melhor estratégia do que eleger um bufão como “Líder do Mundo Livre”?

Trump até foi algo cauteloso na imagem da sua relação presidencial com a Rússia. Depois da campanha pejada de elogios a Putin, na Casa Branca a coisa mudou de figura, regressando até uma rispidez típica da Guerra Fria. Em questões como a síria, a iraniana e até mais recentemente a ucraniana, o discurso de Donald em relação ao Kremlin ganhou contornos antagónicos que, parece-me, nunca se viram nos insuspeitos mandatos de Obama. A hostilidade para com a Rússia pode explicar-se enquanto estratégia política, pressão interna, prova de força, manobra de diversão ou, quem sabe até, despeito de Trump pela possibilidade de ter sido manobrado. A verdade é que o bromance entre Donald e Vladimir demonstrou-se ainda aceso, isto no encontro que tiveram à margem da reunião do G20 há menos de uma semana. Amantes dissimulados, amores subjugados, facadinhas e intentonas? Não se sabe qual o desfecho desta série retro, que também resvala para a telenovela – a mais perigosa de sempre; até mais perigosa que a licenciosa Tieta.

Desde a noite das eleições nos E.U.A. que o meu optimismo vem somando derrotas. Ainda assim, conto que os emails de Donald Trump Junior cumpram a primeira função dos escândalos: serem escandalosos. Alguma areia há de parar a engrenagem, e esta parece ter potencial de pedregulho. Restam-me poucas dúvidas de que o mundo está encabeçado por personagens perigosas. Nesta altura já nem quero saber de um desfecho estrondoso para tal ficção; basta-me que o calcanhar de Aquiles seja um calcanhar de emails.

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