Isto não é de agora, mas tem sido especialmente notório: anos com muitos falecimentos célebres podem transformar uma coluna de opinião numa recorrente página de necrologia. As mortes dos extraordinários parecem mais ordinárias que nunca, mas era inevitável voltar às elegias fúnebres quando se trata de Chuck Berry. Não é só a importância do músico que assim o obriga, é também a importância mais ou menos frouxa que foi dada à sua morte. Aquando da notícia, o primeiro comentário que li foi “O quê? Ele ainda estava vivo?”. Não é a melhor pergunta que se faça, sobretudo se se refere àquele que, até ao último dia 18, era o mais importante músico vivo. Não tenho dúvidas.

É questionável que tenha sido Chuck Berry a inventar o rock ‘n’ roll, mas se é questionável também é respondível e, neste caso, nenhuma resposta é mais acertada que um “sim”. Berry não estaria sozinho a patentear esta nova sonoridade, mas foi o impulsionador mais completo, o mais vigoroso e o mais rebelde. Para que fiquemos claros, quando falo em “sonoridade” não me refiro apenas àquelas ondas que nos entram nos ouvidos, falo de uma semente que nos entrou na cultura e a mudou. Mudou-a tanto ou mais que qualquer descoberta científica. Mudou-a tanto ou mais que qualquer guerra - e decerto não era paz.

A maneira como o rock transformou o mundo, e a forma como está ligado a praticamente todas as formas de expressão cultural contemporâneas, nem precisa de explicações. Mas, se me lançasse nessa empreitada de explicar e exemplificar, precisaria de 60 anos de crónicas semanais (os mesmos anos que passaram desde que Chuck mandou o Beethoven rebolar). Haveria muito para contar sobre a maneira como o rock ‘n’ roll, qual árvore robusta, ramificou e se enraizou na cultura da segunda metade do séc. XX. Também se enxertou noutras árvores e frutificou em quase tudo o que ouvimos, e muito do que fazemos hoje. Se é longa a lista de consequências, também seria extenso o catálogo de antecedências; no meio de tudo isto um ponto único, um Big Bang: o Big Berry que nos interessa.

Numa combinação mais perfeita e inusitada que salmão fumado com alcaparras, Chuck Berry misturou a música inequivocamente negra com a música inequivocamente branca. Ofereceu à matriz transgressora do rythm ‘n’ blues algumas fórmulas popularuchas do folclore branco mais saloio. Misturou trejeitos e cortou amarras. Baralhou temáticas e universalizou-lhes o apelo. Amalgamou tradições e deu-lhes novas poses. Foi uma implosão de estilos e explosão de estilo. Ainda hoje lhe imitamos as manobras, o manuseio criativo da guitarra, o duck walk com que se passeia num palco. Ainda hoje se copiam os solos, a fustigar duas cordas, plenos de naturalidade e pontaria “como se tocasse a uma campainha” (cantaria Berry na sua canção mais emblemática, “Johnny B Goode”). Nos anos 50, este afro-americano do Missouri sublimou a música dos brancos e ergueu a música dos negros – foi harmonia musical a partir das faces da tensão racial. A misturar preto e branco num resultado que é tudo menos cinzento. “It’s gotta be Rock ‘n’ Roll music”.

Não é preciso ter tido uma vida impoluta (e Berry não primou pelo bom cadastro) para se ter uma obra singular e até recomendável. Ao celebrar o marco deste músico não há que enaltecer-lhe o historial menos decoroso. Nem sempre precisamos de olhar para o mau-génio quando estudamos a anatomia dum génio mas, no caso de Chuck Berry, há aspectos a considerar. Mesmo no lado transgressor, o cantor era genuíno e original. E, ao invés de cantar músicas em que prometia fazer e acontecer, Berry fazia e acontecia fora das músicas. Era a antítese dum poseur antes de haverem poseurs.

Ainda que as transgressões de Berry tenham sido tão públicas quanto os seus grandes feitos, não precisamos de assobiar para o lado quando pretendemos homenageá-lo. Chamei-lhe o “mais importante” exactamente porque a sua música se universalizou para além de quaisquer contornos pessoais – pertence mais à História do que a uma pessoa. Isto parece menosprezo do artista, mas é a grandeza dele que assim o dita . Embora raros, há casos em que o contributo histórico de alguém é tão imenso que a própria pessoa nos escapa da vista. Partimos para falar do mundo que mudou, mais do que de quem o fez mudar. Não fizemos isso com o Elvis, não fizemos isso com o Lennon, não faremos isso com o Dylan e, ainda assim, nenhum destes teria existido se não houvesse um Chuck Berry. Fomo-nos esquecendo, e é por este motivo que hoje o lembro tanto.

Sempre me achei um bocado rock ‘n’ roll por gostar de ir para palco com poucos ensaios. O velho Chuck, por sua vez, passou metade da vida a viajar dum lado para o outro, a contratar bandas que desconhecia em cada cidade, a subir ao palco sem nunca ter falado com os músicos, e a começar a tocar sem avisar que canção era, nem tampouco que acordes viriam a seguir. Das bandas a soldo fizeram parte muitos anónimos, mas também ilustres como o Springsteen – de quem já li destas histórias de impreparação – ou o Tim (dos Xutos), que já me conferiu pessoalmente tais relatos. Sentia-me do rock e acabo a sentir-me um menino. Um menino órfão, que acabou de perder uma boa referência de maus costumes. Até por isso, hoje teriam de aqui pairar elegias e necrologias. Mas é tempo de acordes electrificados; ai de quem fizer minutos de silêncio. Berry rebolaria no caixão como um qualquer Beethoven.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

A única pessoa que pode retirar mérito ao Chuck Berry na invenção do rock ‘n’ roll é o Marty McFly.

Noutras músicas, o camarada Araújo a botar faladura certa.

E, pegando no Marty McFly, fica o desejo de que o poder de veto do Presidente Marcelo também pudesse viajar no tempo.

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