Perdoem a maneira como personalizo a questão, mas era necessário introduzi-la desta forma. Não quero ninguém desavisado a achar que ia obter aqui uma opinião imparcial ou estritamente ajuizada; se isso acontecer, foi mero acaso. Ou então foi fruto da excelência dylaniana que nem permite que resvale a lógica dos seus defensores. Não é um dogma, é um Dylan.  E antes que julguem que estou só a defender a minha classe (é que ganho a vida a escrever canções - mas sem pretensões literária, que não quero a Alice Vieira a ter de atravessar para o outro lado da rua se me vir) previno que, muito antes de me sustentar com esta actividade, eu já fazia figas cada vez que se falava no nome de Bob Dylan como potencial Nobel. Sou, portanto, um fanboy com a cegueira característica, embora goste de pensar que é a cegueira iluminada de quem se encandeou. Não ouço melhor por estar cego, estou cego por ouvir o melhor. 

Quando este texto for publicado já terá passado quase uma semana desde que se anunciou o Prémio Nobel da Literatura. O melhor de escrever com tal distância é que, por esta altura, a polémica já terá morrido. Acho bem, senti-a moribunda desde o início. É depois com prazer pessoano que faço gazeta a um dever - o de escrever sobre coisas importantes, passando antes a ir ao fundo dum assunto furado.

Depois da seca de discussões como a dos limites do humor, e mais recentemente a estopada dos limites da liberdade de expressão, não estou nada surpreendido com a delimitação da Literatura a gerar polémica. Sendo verdade que esta última contenda até é a que mais me seduz, também é por aqui que melhor me borrifo para quem não está de acordo comigo. O meu nível de acossamento é nulo, e chego a sorrir com certa ideia que parece pairar sob os meus adversários nesta questão: a alegação de inferioridade sobre as exigências dos escritores de canções, como se tivessem tirado um curso de socorrismo por não terem notas para entrar em Medicina. É o tipo de discurso que, inadvertidamente ou não, acaba por presumir mais potencial literário no Viver a Vida a Amar da Fátima Lopes do que no poema ouvido em Take This Longing do Leonard Cohen.

Em conversa recente com o Diego Armés – refiro-o por ser um dos melhores escritores de canções cá do burgo, mas igualmente dotado nas palavras desprovidas de música, e uma das pessoas a quem não atendi o telefone nos últimos dias – confessava-lhe o espanto com os muitos discursos inflamados, a invocação da liberdade de restringir liberdades taxonómicas, ou a igualdade de oportunidades para todos excepto os bastardos das letras (filhos de plebeia musical); pareceram-me bolcheviques snobs a proteger a exclusividade do seu country club. É um tipo de sectarismo que seria agredido de forma cabal pelos mesmos que agora o produzem, bastava o tema ser outro. Qualquer outro; todos menos este. E é contra certezas constritoras que um tipo como eu (que se está a borrifar) se sente a vencer numa luta que nem sabia existir. Toda a argumentação que tenta objectivar a Literatura, seja pelo estilo, género, formato, traduzibilidade, número de páginas ou gramagem do papel, está condenada. Se exclui os entendimentos e os desentendimentos do sujeito, exclui-se das Artes. Basta admitir-se que a Literatura é, em parte, a escrita elevada a Arte, para se ter de admitir que a Literatura é, na totalidade, a escrita elevada a Arte. Se também é Arte, é Arte acima de tudo. A partir daqui, tentar objectivar os parâmetros da funcionalidade artística da escrita é pisar um terreno pantanoso com 2000 anos de lama filosófica.

Clarifico que só estou a abordar uma porção da polémica. Houve muita discórdia e concórdia que não viso. Apenas estão na minha mira os que, num conceito intolerante a canções, se apressaram a agrilhoar a Literatura. No fundo sou preguiçoso, porque escolhi os alvos mais fáceis. Com excepção talvez do Prémio Nobel da Paz, nenhum outro dos galardões suecos tem gerado tantos desacordos como o da Literatura, mas que neste caso ganharam proporções de polémica. A aparente novidade facilitou a controvérsia. É que as claques do Murakami, Roth ou Lobos Antunes puderam, finalmente, fingir que a injustiça não tinha que ver com os seus gostos; na impossibilidade de impugnar um Nobel, tentaram fazer-nos crer que o Nobel impugnou a Literatura. Dylan foi só bode expiatório (e perdi a conta às vezes que li sobre a sua voz ser de bode) de velhos facciosismos.

O que me está a deixar confuso, sobretudo num assunto para o qual me devia borrifar, é a quantidade de argumentos que andam aqui à mão de semear e poderiam elevar a discussão para patamares de real interesse. Contudo nem eu, nem um limite de caracteres razoável para esta crónica, queremos fugir dos raciocínios menos exigentes. Seguem alguns:

1º - Como se isto fosse um assunto legal, recordo o precedente redescoberto de Rabindranath Tagore, homem que era sobretudo um escritor de canções e ganhou o Nobel da Literatura há 103 anos.

2º -  Se a Literatura não pode acontecer numa canção pela sua concretização musical, o que nos impede de excomungar a dramaturgia, visto que aponta para uma execução teátrica (muitas vezes até musical)? Queremos mesmo ver a Literatura livre do Shakespeare e do Gil Vicente?

3º - Invalidar uma palavra escrita só porque foi feita para ser cantada é tão ridículo quanto cantar uma palavra escrita para invalidá-la.

4º - Mais precedentes: a quantidade de canções que são universalmente consideradas Literatura alberga uma fatia (muito considerável) de toda a poesia alguma vez escrita, desde a pré-história até à invenção do fonógrafo; querem fazer crer que os critérios literários são os da surdez?

8º - Se pretendêssemos mesmo essa coisa abjecta dum organismo que regulasse o que é ou não Literatura, haveria até à semana passada alguma instituição mais consensual e reverenciada do que a Academia Sueca?

15º - A  impossibilidade de tradução eficaz da obra de Dylan (e de alguns colegas seus) para outras línguas não pode ser um argumento. Não significa falta de qualidade ou de universalidade literárias, na medida em que os coloquialismos e as expressões idiomáticas, que enriquecem os poemas, muitas vezes só vigoram na língua original – língua essa que, por ser inglês em cama pop, é língua franca, logo universal.

84º - Já saltei uns quantos argumentos da lista e perdi-me, mas havia um que falava dum gajo chegar cansado a casa e não ter capacidade de distinguir slam poetry de rap, nem de jogos florais tondelenses.

De novo, nisto do prémio Nobel atribuído a Dylan estou a ignorar o debate de outras polémicas, não a existência delas. Seriam assuntos que, ao invés de me tirarem do sério me iam pôr no sério, coisa que ninguém merece. A discussão em torno do cariz pop da obra do premiado, por exemplo, podia levar a reflexões mais extensas. A própria identidade e a gestão de expectativas (contrariando, aquiescendo ou ignorando-as) do comité Nobel dava pano para mangas. Já quanto à controvérsia mais abrangente - se Bob Dylan merece ou não o galardão, se a escrita dele é boa o suficiente - vou encerrá-la. É claro que merece, é claro que a escrita é boa. Dylan é o maior, eu não sou imparcial, vocês estão todos errados.

Sítios certos, lugares certos e o resto:

A polémica Nobel com Dylan aqui muito bem resumida, analisada e deixada em paz. Excelente J.M. Vieira Mendes, no discernimento e contenção.

O programa Curtas às Quartas é, pela espantosa criteriosidade, um dos grandes programas sobre cinema, mais especificamente curtas-metragens, que o país viu (ou devia ver) neste século. Enquadra-se na programação do TvCine2 que tem sido uma das grandes surpresas, roçando serviço público em canal privado, a passar pelo meu televisor

A Quintinha D’Arga, na aldeia de Dem, é mais um pequeno ponto geodésico a provar que o Minho é o centro do mundo. Rodeados pela serra d’Arga e pela simpatia da família Pires, aqui enchemos olhos, barrigas e corações. Se decidirem conhecer, mandem cumprimentos meus ao gatinho amarelo que por lá passeia. Se abusarem do Xiripiti (especialidade caseira de mel de urze com bagaço, servido muito frio) talvez ouçam o gatinho amarelo saudar-me de volta.