Quanto ao que se passou, é bom dizer que o espectáculo da votação do impeachment de Dilma Roussef na Câmara dos Deputados deixou os brasileiros com a boca aberta de incredulidade. Os comentários de surpresa, desilusão, repúdio e troça nas redes sociais e blogues mostram que a maioria não tinha realmente percebido o baixo nível dos seus deputados. Muitos apresentaram-se com cartazes pró e contra, como se estivessem numa manifestação de rua; e nas declarações de voto facultativas, uma grande maioria afirmou que iam votar em nome dos filhos, de parentes, de associações recreativas, de causas despropositadas e princípios obscuros, muito poucos se referindo ao essencial – que estavam a representar os seus eleitores.

Mas, se a maioria das declarações foram ridículas, cheias de erros de português e frases sem sentido, algumas surpreenderam pelo lado aterrador – como o deputado Jair Bolsonaro do Partido Progressista (de direita), que dedicou o seu voto a um dos maiores torturadores da ditadura militar, Carlos Ustra. Logo a seguir o deputado Jean Wyllys, do PT, cuspiu-lhe em cima. Tudo isto no meio de uma balbúrdia inenarrável, onde pontificava o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, notório delinquente, com vários processos instaurados, sorrindo beatificamente. Os tribunais já têm provas de que Cunha, a mulher e a filha têm cinco milhões de dólares na Suíça, embora legalmente viva do seu salário.

No meio deste carnaval, que aliás já decorre há semanas, é difícil para a maioria dos cidadãos perceber o que estava em jogo no domingo. Com efeito, e ao contrário do que o PT tem afirmado, não se trata de uma luta ideológica entre esquerda e direita, e muito menos de um "golpe". O impeachment de Dilma Russeff baseia-se em operações ilegais que ela fez – e admitiu ter feito – sem a aprovação do legislativo. Havendo a tipificação comprovada de que ela cometeu o crime de utilização indevida de fundos ("responsabilidade fiscal"), formou-se um comissão parlamentar para avaliar, ouviu-se a defesa, e foi decidido levar o impedimento à Câmara. O facto dela se declarar uma mulher honesta, perseguida pela reacção, em nada desqualifica a acusação e não conseguiu evitar que o relator desse parecer favorável à abertura do processo.

No zoológico do Congresso viu-se espectáculo deprimente de má gramática, religiosidade despropositada e ufanismo regionalista, com beijinhos para os filhotes, padrinhos de crisma, titios e titias pelo lado do SIM; pelo NÃO, assistimos ao mesmo espectáculo, acrescido de bordões velhos da década de 1960, do tipo "não passarão", "pelas invasões", "pelos que morreram lutando contra a ditadura", "pelos cadáveres dos torturados", "por Zumbi e os Quilombolas" - como se a consequência inevitável da votação para a abertura do processo de impedimento fosse a re-instauração de um regime não democrático.

O próximo carnaval será no Senado (o Brasil é bi-cameral) onde bastará a aprovação por maioria simples – sendo que muitos senadores estão incriminados nas investigações do processo Lava-Jato, inclusive o presidente, Renan Calheiros. A decisão está prevista para ocorrer na segunda semana de Maio. Se os senadores decidirem abrir o processo, Dilma ficará afastada até 180 dias (seis meses) à espera do julgamento; enquanto isso, o vice Michel Temer (PMDB) assumiria o cargo interinamente. No julgamento final pelo Senado, a Presidente será definitivamente deposta caso 54 senadores votem pelo impeachment. Nesse caso, Temer assumiria o posto até a passagem do mandato para o próximo presidente eleito da República, em 1 de Janeiro de 2019.

Independentemente de todas as singularidades, todo o processo está perfeitamente de acordo com a lei e previsto na Constituição. Na verdade, a tese do golpe, e as outras teses alarmistas, como as que consideram não submeter ao rigor da lei um Presidente delinquente, é que constituiria um retrocesso ao autoritarismo. Num golpe, a coisa acontece de maneira súbita e repentina: alguém ou alguma coisa vai lá e toma o que quer à força e sem recurso, o que não é o caso.

Os que alegam que a utilização indevida de fundos (as tais "pedaladas") foi prática costumeira em governos anteriores, desvalorizam a escala em que o crime foi praticado por este governo, e pretendem que um erro justifique o outro. Com efeito, não é preciso ser advogado para saber que o criminoso não pode alegar em sua defesa que outros cometeram o mesmo crime.

O que também está em causa, para a opinião pública (93% na última sondagem) é que o Governo de Dilma Roussef fez uma série de promessas que não cumpriu. Os que defendem Dilma, ou Dilma e Lula, são os que acham que José Dirceu, actualmente a cumprir longa pena pelo "mensalão", é uma vítima inocente e perseguido pelos "reaça-fascistas", que o dito "mensalão" foi uma prática aceitável em nome da governabilidade, e que não existe problema nenhum no facto do PT ter falido os fundos de previdência públicos para financiar a campanha eleitoral de 201. Ou que acham que as "benesses" imobiliárias concedidas pelas grandes empreiteiras ao ex-Presidente são intrigas da oposição, e que há uma justificação para o desaparecimento de mais de mil e trezentos milhões de dólares na Petrobras.

Na verdade, a democratização e modernização do Brasil acelerou precisamente depois de outro processo de impeachment, o de Fernando Collor de Mello, em 1992. Foi nessa época, com os governos de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso, que se deu a estabilidade económica, a redução da inflação e o início dos programas sociais que abriram caminho para que depois o PT chegasse ao Governo, em 2003.

As esperanças eram imensas, e agora a desilusão e as frustrações são maiores ainda. Há a consciência de que destituir Dilma não resolverá a questão, uma vez que o poder ficará na mão de delinquentes já incriminados, Temer, Costa e Calheiros; mas também há a esperança de que em breve também estes políticos respondam pelos seus actos.

Neste momento de ressaca, é o que corre no Brasil.

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