Até muito recentemente, era frequente lamuriar-me acerca da parca oferta de soluções de entrega ao domicílio que a capital oferecia. Sejamos sinceros, haverá promessa melhor de um serviço do que oferecer-se para nos desobrigar de levantar o rabo, apanhar frio, passar pela humilhação de estacionar em paralelo, lidar com pessoas, sorrir e tudo o que envolva mirar os olhos de outros seres humanos apenas para evitar a fadiga e o desconsolo de conceber e degustar uma frugal massa com atum?

A verdade é que desde o fim da década de 2000 que já vinham aparecendo sites que facilitavam essa troca de bens. No entanto, era necessário selecionar, com um rato ótico e tudo, os pratos da nossa predileção e possivelmente aguardar três quartos de hora pelo requerido repasto. Hoje em dia, fazendo uso das aplicações intuitivas (o que seria do Homem se não tivesse ao seu dispor ferramentas que exigem apenas e só da sua intuição), qualquer entrega que demore mais do que trinta minutos já é considerada uma experiência kafkiana, que valerá ao entregador uma nota negativa, o qual doravante responderá pelo nome, não de Fábio, mas de Gregor Samsa do Ramen Que Entretanto Arrefeceu.

Em Portugal, as pessoas têm alguma vergonha de almoçar ou jantar sozinhas. A solidão daquele que diz “sou só eu” ao chefe de sala e se rodeia da companhia do cesto com um único pão e de meia garrafinha de vinho, enquanto espera pela meia dose que parcialmente irá levar para casa numa caixinha paga à parte, é malvista. Agora, dentro de quatro paredes, ninguém adivinha – portanto não julga moralmente - o facto de nos termos tornado em inveterados ermitões gastronómicos.

Uma dessas novas aplicações, inclusivamente, afirma mesmo que os seus estafetas podem ir buscar o que quer que o cliente deseje. As hipóteses tornam-se infindáveis: comida, snacks, compras, fármacos não sujeitos a receita médica (ou, diria eu, sujeitos às receitas médicas que o entregador tenha consigo por via de uma condição de que padeça, sei lá, pode sofrer de ansiedade crónica, fazer o jeitinho e trazer o Xanax a quem tenha uma agorafobia tão grande que nem consegue sair de casa no sentido de ser diagnosticado), uma carta de amor, uma providência cautelar para correr com o futuro ex-marido, um filho à escola (se não o alimentarmos tão bem como nos alimentamos a nós, pode muito bem caber na caixa de entregas) ou mesmo drogas pesadas. Como é que havemos de querer abandonar a zona de conforto, se tal zona se torna indiscutivelmente confortável?

Obviamente que a dinâmica ainda tem muito que evoluir. Ainda somos obrigados a uma fastidiosa interação com o estafeta. É desconfortável, tendo em conta o mundo que separa o entregador do prestas-a-ser glutão. Tu, que fizeste o pedido, que saíste disparado do conforto do teu sofá a fervilhar de expectativa por queijo derretido, abandonarás o curto diálogo para te dedicares a ingerir uma quantidade irracional de uma qualquer conspurcação canónica de uma iguaria italiana. O teu interlocutor regressará à sua bicicleta (note-se a inovação! Vivemos indubitavelmente na era da máquina!) para arcar, à chuva, com os pedidos de outras famílias culinariamente disfuncionais. Diz-se que ser professor é ser pago para aturar os filhos dos outros, ser estafeta é ser pago (muito mal) para arcar com a comfort food de terceiros. Uma pessoa sente-se culpada, sente o peso da história, quase que se presta a discursar acerca do reconhecimento do seu privilégio, mas, até porque em Portugal a doutrina diverge em relação às gorjetas, fecha a porta com força após um “com licença” protocolar e inicia o ataque ao pitéu, não antes de selecionar um conteúdo Netflix com o qual seja pertinente emparelhar a refeição.

Em breve, tal tensão social será algo do passado, uma vez que disporemos de veículos sem condutor que nos entregarão diversas guloseimas em casa. Ou drones, que potencialmente terão menos probabilidade de entornar a minha coca-cola.

A tecnologia está a obrigar-nos a dizer adeus a rituais demasiado recentes, demasiado depressa. Recordam-se de quando efetivamente éramos forçados a ligar para a pizzaria para que eles viessem entregar a nossa casa (cuja morada chegávamos a ter de ditar duas vezes)? Falar com pessoas, mesmo! Constrangidos a elencar os ingredientes em voz alta, hesitando entre azeitonas ou cogumelos, optando, numa crise criativa, pelo extra queijo, debelando intrínsecos problemas de expressão e social awkwardness? Eram outros tempos. Vou alimentar a esperança de que um dia chegue, de facto, o delivery de saudade. Por ora, foco-me apenas em diminuir a distância relativa entre o hambúrguer do almoço de hoje e o meu ansioso bucho.

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