Quando o austríaco Musil teceu estas definições em 1937, fazia-o de forma intemporal, inspirado sobretudo pela filosofia clássica. Não deixava de ser, ainda assim, uma consideração sobre o seu tempo. O tom e o conteúdo denotavam crítica e condenação à ascensão do nazismo. Por isso não é estranho que, 27 anos mais tarde, o filósofo Eric Voegelin se tenha alicerçado no binómio de Musil para uma palestra intitulada “Hitler e os Alemães. Foi no seguimento do conceito de “estupidez inteligente” que Voegelin acrescentou a notável noção de “estupidez criminosa”.

Algures no início deste ano, critiquei por aqui o uso do reductio ad Hitlerum e, por isso, asseguro que hoje não trouxe as considerações de Musil e Voegelin para legitimar qualquer comparação da actualidade com o nazismo. Prometo fugir dessa muleta argumentativa; não vou estabelecer paralelos entre a ideologia hitleriana e assuntos da ordem do dia. Mas a “estupidez criminosa”, essa que germinou e acobertou o nazismo, parece ser uma tipologia da qual nunca nos livraremos. Não são as faculdades mentais que estão toldadas no estúpido-criminoso, são outras mais profundas, e é por isso que Voegelin fala em “pneumopatologia”, doença do espírito. Esta maleita não é só de 1937, ou de 1964. Em 2017 ouço muito tossir catarroso de espíritos enfermos.

Em Março do ano passado, tanto o PS como o Bloco propuseram votos de condenação às penas aplicadas a activistas em Angola. O chumbo dessas moções empregnou-me de raiva. Enfureci-me contra os partidos da direita que votaram contra, alegando que as propostas seriam uma ingerência na Justiça angolana. O óbvio interesse partidário, a cobardia política e um conjunto de subserviências, compadrios e negociatas estavam ali disfarçados de cautela diplomática, o que me irou sobremaneira. Mas à minha fúria escapou o outro partido que votou contra as propostas: o PCP. E porque é que escapou? Exactamente pela condescendência que o hábito nos cria. Porque do PCP já se espera esta lealdade ideológica, esta preocupação com o Bem do povo, sendo que por Bem entende-se uma bandeira e um espectro doutrinário, mesmo que seja aquele Bem que amordaça, esfaima, algema e mata. Porque do PCP já se espera a estupidez inteligente, por onde grassa a criminosa.

Quando esse mesmo partido exige que o Governo de Portugal respeite os resultados das urnas na Venezuela, implicitamente também pede que o Governo não olhe à matrioska de manipulações – na boneca grande está uma eleição feita, de forma mais ou menos assumida, para manipular um país; lá dentro está uma eleição feita (segundo a própria empresa que organizou a votação electrónica) com resultados manipulados. Nenhuma surpresa nos invade. Esta visão deturpada e deturpadora vem da mesma casa onde se efabulam as liberdades cubanas, ou onde é mais fácil pronunciar “Hipopotomonstrosesquipedaliofobia” do que “A Coreia do Norte não é uma democracia”.

Mais uma vez, e para recuperar Musil e Voegelin, o problema nunca esteve em incapacidades de compreensão, mas sim em incompreensões deliberadas. Todos os partidos padecem dessa estupidez inteligente, mas nenhum de forma tão dogmática, tão coerente. Coerente até nas incoerências, quando situações idênticas conseguem arrancar o mais enlevado louvor e a mais mortificada condenação: basta o auricular esquerdo transmitir canções tirânicas, e o direito passar cantigas despóticas. A diferença entre um grande estadista e um sanguinário ditador pode ser só o número de foices e martelos que ele desenha quando se distrai a falar ao telefone.

Na Venezuela está o exército destacado para reprimir a população. Há presos políticos. Há a sucessiva desautorização de toda e qualquer instituição que é sufragada em favor da oposição. Há um presidente autocrata que se prepara para reforçar os poderes com uma Constituição de legitimidade dúbia. Há juízes a pedirem asilo político nas embaixadas estrangeiras. Há eleições com participação forjada e resultados manipulados. Há miséria, fome e um número inacreditável de mortos em manifestações. É este o paraíso da revolução bolivariana? É esta a democracia que o nosso Governo tem a obrigação de respeitar?

Afirmou ontem o PCP que não reconhecer a Assembleia Constituinte venezuelana é uma “posição contrária aos interesses da comunidade portuguesa daquele país”. A falácia é múltipa e gritante; berra “estupidez inteligente”, brada “estupidez criminosa”. Sugere o Partido Comunista que os interesses da comunidade portuguesa são o leito reconfortante e ordeiro duma ditadura? E para os portugueses que não simpatizam com Maduro (que nada leva a crer serem uma minoria, bem pelo contrário), os interesses serão a prisão, ou ver os dias encurtados num paredón venezuelano? Já que é para cubanizar, que se imitem também os carrascos. Pergunto finalmente: e se a eleição de Macron em França, ou Trump nos E.U.A., estivesse envolta em tanta suspeição, estaria o PCP disposto a aquiescer os resultados, tendo em conta o interesse das comunidades portuguesas lá? –exemplifico precisamente com os dois países que mais emigrantes lusos albergam.

Há argumentos que não pegam. Dizem que os meios de comunicação são tendenciosos e que nos chegam cá informações erradas, mas quando a alternativa é a Venezuelana de Television, canal onde podemos ver Maduro a discursar com planos telenovelísticos para um público de Praça da Alegria, ou a marcar o compasso numa versão propagandística da Despacito, deixem-nos cá estar sossegados com as fake news da CNN, da Reuters e afins. Há também o argumento económico, onde nos chapam com o défice dos tempos de Chavez e o comparam com o de outros tempos, ou de outros países sul-americanos; é um argumento óptimo, logo por fazer lembrar os saudosistas do Estado Novo com os défices orçamentais de Salazar na ponta da língua. Para mais, se o barómetro de sucesso do comunismo fossem economias fortes e povos com qualidade de vida, então há já umas boas décadas que se teria reprovado e extinto tal projecto ideológico. Claro que existe sempre a interferência dos americanos para culpar todas as misérias – nesse sentido, não será o embargo estado-unidense uma óptima notícia?

Não me iludo. Sei que a oposição venezuelana está pejada de gente imprestável, tão demagoga no uso da palavra “democracia” quanto Maduro. A questão não é o que pode acontecer, é o que já está a acontecer. Aquele país precisa duma Constituição que desmotive ditadores e proteja a diversidade de vontades, não duma magna ideologia colonizadora mais importante que o próprio povo. Precisa de inteligentes que não sejam estúpidos e estúpidos que não sejam inteligentes.

Continuo a não me iludir: tenho a certeza que o PCP é constituído maioritariamente por gente de boa índole e que quer o melhor para o nosso país. Há alguns até que conseguem escapar ao forte constrangimento ideológico, e se emancipam com opções que privilegiam o indivíduo contra a facciosidade rígida da doutrina, ou o cerco do comité central. Também não ignoro o trabalho essencial que os comunistas têm tecido no Portugal democrático, quer seja pela competente oposição, a luta incansável pelos direitos dos trabalhadores ou a excelente prestação à frente de autarquias. A maior gratidão está na linha da frente que tomaram na demanda pela nossa liberdade, mesmo aqueles que depois tentaram confiná-la a uma democracia como as bolivarianas (onde nos ingredientes, a letra pequena, se lê “democracia 0%”). O que me mói é esta pneumopatologia, doença profunda do espírito. O vírus transmite-se pela palavra, o sintoma agudiza-se pela cassete.

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