O editor Martin Baron – ele é conhecido por Marty – tinha chegado a Boston, ido de Miami, na véspera da entrada no Globe, e nas breves consultas prévias ouviu falar de um assunto que os poderes julgavam intocável na muito católica Boston: uns escondidos acordos extra-judiciais com as vítimas de abusos pedófilos praticados por um padre ao longo de três décadas. Na reunião com o grupo Spotlight, Marty propôs que a equipa tratasse de explorar esse caso. Alguém argumentou que isso seria entrar em terrenos proibidos numa cidade onde toda a gente se conhece – Boston passa por ser a maior das pequenas cidades da América – e onde a Igreja Católica é uma instituição toda poderosa.

Cada cidade americana tem uma arquidiocese forte e um jornal influente. A tradição ditava que uma instituição, como também é o Boston Globe, não beliscaria qualquer das outras, sobretudo a venerada Igreja Católica, encabeçada em Boston pelo cardeal Bernard Law. Mas Marty insistiu. Contou pormenores da experiência que tinha tido no Miami Herald, na condução da delicada investigação sobre o caso da batalha pela custódia de Elian Gonzalez, um “niño balsero” sobrevivente: ele tinha seis anos de idade quando a barcaça de alumínio em que viajava desde Cuba, juntamente com a mãe e outros dez imigrantes, naufragou já perto da costa dos Estados Unidos. Elián, que foi levado de Havana sem autorização do pai, foi o único sobrevivente, agarrado durante vários dias a um pneumático à deriva no Estreito da Flórida. Foi resgatado por dois pescadores de Miami, e seguiu-se uma batalha legal de sete meses, com inúmeras manipulações, sobre o destino da criança, um caso que chegou ao Congresso em Washington. Marty invocou pormenores desta investigação para incitar a que os repórteres da equipa Spotlight explorassem o caso da pedofilia em volta do altar em Boston.

A pesquisa, árdua, determinada, paciente, fora do foco dos holofotes, começou naquele dia 2 de junho de 2001, o ano do 11 de setembro. A equipa de repórteres da unidade Spotlight na redacção do Boston Globe começou a analisar milhares de páginas nos arquivos, a cruzar informação e a preparar e colocar perguntas. Poucas semanas depois, a equipa Spotlight já tinha testemunhos que furavam o muro de silêncio comprometido de vítimas sexualmente abusadas e que apontavam nomes de malditos pederastas.

A investigação recolheu testemunhos que reforçavam a convicção, mas faltava a prova de que o topo da arquidiocese encobria o sistema. Ao fim de cinco meses de investigação, a equipa Spotlight tinha matéria de sobra para revelar abusos cometidos dentro da igreja. Havia então certezas sobre a pederastia de treze padres e mais 65 sob suspeita, mas faltavam provas firmes de que o arcebispo sabia de tudo e encobria. Daí que o editor da equipa Spotlight tenha travado a publicação até que a investigação reunisse provas irrefutáveis sobre o encobrimento. A pesquisa continuou, persistente. Por fim teve acesso a cartas de denúncia remetidas ao longo de anos ao cardeal de Boston por familiares de crianças abusadas. Era a prova procurada.

Assim, finalmente, em 6 de janeiro de 2002 o Boston Globe abriu as explosivas revelações, com a notícia a que todos se esquivavam, de que a igreja de Boston, envolvendo três cardeais e vários bispos, encobriu os abusos sexuais de crianças por padres, ao longo de 34 anos. A partir desta primeira notícia as revelações sucederam-se em catadupa. Ao longo desse ano de 2002 o Boston Globe publicou cerca de 600 histórias nos quais mostrou o que aconteceu ao longo de três décadas de encobrimento generalizado.

Com base num longo trabalho de escavação jornalística, com análise de documentos, dezenas de entrevistas e confrontos com advogados, hierarquia da igreja e influentes locais, com o decisivo contributo do testemunho de vítimas, de um advogado valente e de um sacerdote marginalizado, a equipa Spotlight demonstrou a prática recorrente de abusos sexuais por parte de 70 padres. Também revelou como as coisas decorriam quando as denúncias das famílias de rapazes abusados (o perfil era quase sempre o mesmo, famílias pobres, pais ausentes) chegavam ao cardeal Law: a arquidiocese de Boston comprava o silêncio dos queixosos e afastava o sacerdote da paróquia, com o pretexto de baixa médica.

Em Setembro desse ano de 2002 o cardeal Law resignou e deixou Boston, recolheu à reserva no Vaticano. Em abril de 2003, esta série de reportagens da equipa Spotlight do Boston Globe foi distinguida com o mais prestigiado prémio americano de jornalismo, o Pulitzer, na categoria Serviço Público. A partir de então foram documentados e denunciados casos de abusos de sacerdotes da Igreja Católica em 105 cidades americanas. Os males do sistema ficaram postos a nu.

Há várias lições no conjunto destas histórias: uma, a de que, neste caso, terá sido decisiva a liderança de alguém de fora (Marty Baron, nascido e criado na Flórida, longe de Boston) para ousar confrontar os poderes fortes da cidade, e fazer o jornalismo mergulhar na investigação da história que não ousavam destapar. Outra lição fundamental, a da paciência ao serviço do rigor: a editoria do Boston Globe teve a inteligência – e o instinto - de persistir na investigação cara de um caso que implicou colocar cinco jornalistas a não fazer outra coisa ao longo de seis meses e sem publicar uma linha que fosse ao longo desses seis meses. Poderia ter cedido à tentação de noticiar suspeitas avulsas mas ainda sem enquadramento verificado, como tantas vezes acontece em Portugal. Prevaleceu a persistência na pesquisa e a intransigência no rigor, a par do dever ético e moral. É um guia prático para o ofício de jornalista. É um triunfo do trabalho do jornalismo e dos direitos civis.

Em 2015, esta história protagonizada pela equipa Spotlight do Boston Globe passou a filme, realizado por Tom McCarthy, e agora nos ecrãs. O filme é a reprodução, com a secura da realidade, sem romanticismos nem outros exageros, de uma investigação em busca da verdade dos factos. Todos seguimos a épica cinematográfica de Hollywood, com filmes como O Quarto Poder (1952), Os Homens do Presidente (1976) ou Boa Noite e Boa Sorte (2005). Em Spotlight, não há heróis. O que se celebra é a glória do esforço persistente no trabalho quotidiano de procura da verdade dos factos. Na noite dos Óscares, no próximo dia 28, Marty Baron vai provavelmente estar na plateia do Dolby Kodak Theatre, no Hollywood Boulevard, em Los Angeles, perto da equipa que fez o filme Spotlight para celebrarem esta vitória do sentido do dever. Desde o final de 2012, Marty já não está no Boston Globe.

Em 2 de janeiro de 2013 Marty Baron assumiu a liderança editorial do Washington Post, o terceiro maior diário dos EUA – a seguir ao New York Times e ao Wall Street Journal. Fez aposta na edição digital do jornal nesse ano comprado por Jeff Bezos, patrão da Amazon, à mítica família Graham de patrões tradicionais de imprensa. Em outubro passado, o Washington Post passou ao primeiro lugar das visitas online a jornais nos EUA. No Boston Globe, a equipa Spotlight continua a ser cultivada, renovada. São boas notícias.

Também a ter em conta

A escolha presidencial nos Estados Unidos arrancou no Iowa com várias indicações: nos democratas, Hillary aparece vulnerável, está longe de ter a eleição garantida; nos republicanos, Trump é mesmo uma figura passageira, Ted Cruz impôs-se com o fervor do voto evangélico e da direita cristã mas há que contar com Marco Rubio.

Em Espanha, seis semanas depois das eleições subsiste a incerteza: o socialista Sanchez vai conseguir formar governo (numa solução "à portuguesa") ou o rei opta por novas eleições?

Passa a faltar-nos José António Salvador. Recomendava os bons vinhos e contava boas histórias.

O alerta geral contra o Zika marca as primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO Jornais: esta e esta.E também nesta.