Independentemente das motivações de cada partido, esta terça-feira foi, sem dúvida, um dia histórico. Ter um Orçamento do Estado aprovado com os votos favoráveis do Bloco de Esquerda e do PCP é coisa inédita. Não o perfilharam, acham que o documento é modesto para as suas políticas mas não deixaram de o aplaudir de pé quando chegou o momento.

Não deixa de ser irónico que os dois partidos que não valorizam a redução do défice - acham mesmo que se ele foi criado é para ser grande - e que sempre criticaram o que chamam de obsessão com esse indicador tenham decidido apoiar o Orçamento que prevê o défice mais baixo da democracia - Bruxelas e mercados “obligent”.

É claro que nas contas que os dois partidos fazem há certamente mais vida para além do défice. Há, sobretudo, um governo do PS visto como um mal menor quando a alternativa seria um novo governo PSD/CDS. É sobretudo isso que move a esquerda, o que é absolutamente legítimo.

Este Orçamento já foi criticado por tudo e pelo seu contrário, como disse Mário Centeno na semana passada na conferência organizada na semana passada pela Conceito e pelo ISCTE. O ministro das Finanças tem razão. Este orçamento é, ao mesmo tempo, visto como austeritário e despesista. Como irrealista e pouco ambicioso. Como eleitoralista e penalizador dos contribuintes.

Provavelmente conseguimos encontrar todos esses traços num documento que teve que ser negociado em dois tabuleiros distintos e com visões opostas do que deve ser o Orçamento do Estado português nesta altura.

Primeiro, tivemos a negociação interna à esquerda, que o carregou de despesa e devolução de rendimentos. Depois, foi submetido ao crivo de Bruxelas, que obrigou a uma redução do défice que o Governo resolveu carregando em impostos sobre o consumo.

Pelo caminho ficou a estratégia económica que o PS tinha desenhado durante a pré-campanha, de que a política orçamental era um elemento central. Fruto dos necessários entendimentos para chegar ao poder, António Costa trocou a sua “visão para a década” pelo orçamento possível para os próximos nove meses. Pouco ou nada resta dos planos iniciais dos socialistas que eram um guião consistente, independentemente de se concordar ou não com a sua bondade.

O orçamento a que chegámos - não se esperam alterações de monta na discussão na especialidade - pode ser, de facto, um pouco de tudo e o seu contrário. Mas uma coisa não é: um instrumento que possa ajudar a relançar a economia, que era a pedra de toque do modelo socialista.

O desafio será agora executar o documento sem derrapagens significativas ou aflitivas, o que já não é pouco. Em caso de necessidade, já sabemos com o que podemos contar. O acordo à esquerda impede que se cortem salários e pensões e que se aumentem os impostos sobre os rendimentos do trabalho. Por isso, os impostos sobre o consumo estão na primeira linha dos sacrificados se forem necessárias novas medidas para atingir a meta do défice. E como não resta muito mais, poderemos também não escapar a uma maior tributação sobre as empresas - alguns sectores? algumas empresas? - e sobre alguns tipos de rendimentos individuais para além dos do trabalho.

Bom mesmo era que os astros se conjugassem para que tudo isto fosse desnecessário. Que as nuvens mais negras sobre os mercados de exportação desaparecessem e as empresas portuguesas conseguissem vender mais lá para fora. Que os aumentos de rendimento fossem mesmo dirigidos ao consumo de produção interna e não fossem colocados em poupança ou gastos em bens importados. Que o investimento, sobretudo estrangeiro, subisse para fazer baixar o desemprego. Que a despesa do Estado não derrapasse, como sempre acontece, obrigando a mais aumentos da carga fiscal.

É que o lastro da despesa pública fica sempre de uns anos para os outros. E esta só se paga de duas maneiras: impostos hoje ou impostos no futuro. Podemos iludir-nos com a tributação do consumo como alternativa aos impostos sobre os rendimentos. Mas não passa disso mesmo, de uma ilusão. No fim do dia, os impostos são sempre pagos pelos contribuintes. A diferença é que uns são pagos directamente à Autoridade Tributária e os outros são entregues a empresas que depois os entregam ao fisco. Podemos não dar conta deles, mas estamos a pagá-los na mesma.

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