Quem foi Johannes Gutemberg? Apenas o homem que inventou impressão, tornando possíveis os livros que lemos. E John Snow? Simplesmente o escocês que descobriu a desinfecção da água com cloro, permitindo que possamos bebê-la da torneira. Ou quem terão sido John Bardeen, William Schockley e Walter Brattain? Pois inventaram o transístor, sem o qual todos os aparelhos electrónicos que usamos seriam impraticáveis.

Esquecidos, também, os que ajudaram a mudar a ordem social. Toda a gente terá ouvido falar de Karl Marx, mas poucos identificarão Oswald Spengler ou Arnold Toynbee, os historiadores e filósofos que descobriram que as civilizações inevitavelmente nascem, crescem e morrem. Ou Alexis de Tocqueville, que identificou os paradigmas da democracia.

Podemos fazer as perguntas ao contrário: quem foi que decidiu que as mulheres teriam de obedecer aos homens? Quem foi que decretou que a virgindade, masculina ou feminina, é um valor? Esses, não sabemos. E quem foi que convenceu o mundo (enfim, meio mundo...) que as mulheres têm tanto direito à libido como os homens? Ah, esse foi, precisamente, Hugh Hefner, que morreu agora, aos 91 anos.

Apesar de ainda não ser uma ideia universalmente aceite, há milhões de homens que não dividem as mulheres entre santas e galdérias. Que não acham que umas são para casar e ter filhos e as outras para reinar e esquecer. Para um jovem de hoje, civilizadamente educado, essa questão não se coloca sequer. Mas colocava-se há cinquenta anos, e vinha de séculos de preconceito e sexismo. Hefner foi o primeiro a defender, publica e continuamente, o direito da mulher exprimir a sua sexualidade com o mesmo à vontade do homem. (Também foi um pioneiro na defesa da homossexualidade, embora esse aspecto seja menos conhecido.)

Para divulgar as suas ideias, Hefner não escreveu um livro; antes publicou uma revista, na época em que as revistas eram as grandes fontes de informação. Em 1954, com dinheiro emprestado, colocou no mercado o primeiro exemplar da “Playboy”, com tanto medo de não vender que nem colocou número e data na capa. Mas colocou Marilyn Monroe – e nas páginas interiores publicou um conjunto de fotos dela feitas para um calendário em 1949 e compradas por 200 dólares. O número-um-sem-número vendeu 50 mil exemplares em poucas semanas. Hefner tinha exposto uma revolução oculta.

A década de 50 do século XX foi um período de grandes mudanças e surpresas para a sociedade americana e ocidental. Um grupo de cientistas seríssimos, dirigidos por Alfred Kinsey, publicou dois relatórios, “O comportamento sexual do homem” (1949) e “O comportamento sexual da mulher” (1953). As descobertas eram estarrecedoras. Entre outras surpresas, a de que mulheres saudáveis e normais, solteiras, casadas e mães, tinham desejos sexuais, vontades e actividades que nunca lhes tinham sido reconhecidas (isto para simplificar muito conclusões bem mais complexas).

Os poderes, sempre conservadores, há dois mil anos imbuídos duma moral fundamentalista, sempre legislaram noutro sentido e a sociedade tinha-se acomodado a viver numa negação hipócrita. Os relatórios foram uma bomba nos meios académicos; a Playboy levava esses conhecimentos ao grande público. As raparigas que apareciam na revista, algumas sob a rubrica reveladora de “A vizinha do lado”, exibiam-se sem preconceitos aos homens que, segundo mostravam os relatórios, eram essencialmente voyeurs. A distinção entre mulheres “boas” e “más” perdia o sentido, no sentido em que todas eram as duas coisas, conforme lhes apetecia. As raparigas que pousavam para a Playboy tinham nome, profissão, falavam das suas ideias e ambições.

Hefner não era o pornógrafo oportunista de que o acusavam as forças conservadoras; ele sabia muito bem o que estava a fazer. Numa entrevista, afirmou que “a maior força civilizacional do mundo não é a religião, é o sexo”. Quanto aos relatórios, também sabia colocar-se em perspectiva: “Kinsey fez a pesquisa, eu publiquei o panfleto”.

Assim que a revista começou a fazer sucesso – ou seja, imediatamente – Hefner alargou a esfera cultural da revolução. Contratou para as suas páginas os melhores escritores da época - Saul Bellow, Arthur C. Clarke, Norman Mailer e Gore Vidal, são alguns, entre dezenas. Mandou fazer jornalismo investigativo de ponta e chamou artistas plásticos que viriam a tornar-se importantes. Mais tarde afirmaria: “Nunca pensei na Playboy como uma revista de sexo; sempre a considerei uma publicação sobre estilo de vida, em que o sexo era um dos ingredientes.” Criou também um novo estilo de entrevistas, de grande profundidade, aproveitando o formato para discutir o indiscutível, como a Guerra do Vietname ou a segregação racial. Para entrevistar o líder dos nazis americanos, escolheu um jornalista negro. (“Desde que não seja judeu...” terá dito entrevistado.)

As feministas, que surgiriam mais tarde – “A mística feminina”, de Betty Friedan, é de 1963 – acharam a Playboy um horror, pois não perceberam que por trás do exibicionismo e eroticismo das fotografadas (algumas com vidas muito “públicas”) estava uma independência recém-conquistada que apontava para a igualdade. Na década de 1960, aproveitando o sucesso da revista, com tiragens na casa dos sete milhões de exemplares, Hefner lançou os clubes Playboy e, mais tarde ainda, uma série de produtos complementares, inclusive um canal de televisão.

Mas, como acontece frequentemente com as revoluções, o seu sucesso determinou a sua morte. Outras revistas começaram por copiar a Playboy e, a partir de certa altura, a mostrar fotografias muito mais ousadas. Foi o caso da Penthouse (1969) e da Hustler (1974). Começou uma competição sobre quem mostrava “mais”, sendo que Hefner se recusou a participar; enquanto as outras passaram para o “black” (pelos púbicos) e depois para o “pink” (o que os pelos escondem), a Playboy continuava a mostrar apenas seios e poses mais sensuais do que sexuais.

Finalmente, com o aparecimento dos vídeos alugáveis e da Internet sem censura, as meninas da Playboy passaram de vizinhas tentadoras a pãezinhos sem sal. O processo que Hefner iniciara ultrapassava-o.  Entretanto a Playboy, que continua a publicar a melhor ficção e os melhores artigos de investigação, patrocinou e incentivou diversas causas sociais ditas fracturantes, como a interrupção voluntária da gravidez, a igualdade étnica, a imigração de crentes de outras culturas, ou a oposição às guerras em que os Estados Unidos constantemente se envolvem. Hefner apoiou vários movimentos de emancipação de minorias e contribuiu para todas as campanhas dos democratas.

Pessoalmente, Hugh Hefner nunca escondeu o seu lado hedonista. Vivia numa mansão espampanante mesmo para os padrões de Hollywod, onde dava festas que duravam dias. Casou três vezes e teve incontáveis namoradas. A sua última mulher era sessenta anos mais nova do que ele. Teve quatro filhos, o mais novo dos quais, Cooper, é quem dirige actualmente o conglomerado de empresas Playboy, reduzido, em adaptação constante, mas activo.

A icónica professora de filosofia e crítica Camille Paglia diz que “Hefner é um dos principais arquitectos da revolução social do século XX”. Se uma mulher de esquerda, feminista, homossexual assumida e comentadora vitriólica, faz uma afirmação destas, quem é que pode duvidar?