Mesmo assim desamarrotei a minha senha, num respeito institucional que me exige sempre decoro e nem sempre opinião; sorri e acenei àqueles pendericalhos suficientemente grandes para tapar furos de orelha, insuficientemente grandes para lhes permitir que esburaquem conjugalidades. Concordar com plena aparência de convicção já salvou mais casamentos que um batalhão de doutores Phil.

Despachados os brincos, torno à folha desadornada desta primeira crónica. Há preciosistas a defender que não existe essa coisa da “primeira crónica”, que crónica exige continuidade, que apenas a sequência de um segundo texto poderá consagrar o anterior nesta categoria. Aproveito tal legalismo para votar esta redacção inicial (já que ainda não está a valer) a uma espécie de declaração de intenções. Na pior das hipóteses uma declaração de impaciências.

Se hoje parece que estou a empatar, asseguro que não é por achar que há algo desengraçado na actualidade, muito pelo contrário. Infelizmente, até tenho a certeza que na próxima semana (quando já for a valer) tudo se manterá animado, tudo passível de comentários espirituosos, tudo a saltitar e a indistinguir-se entre o murro no estômago e a cócega na axila. Semânticas taxativas e taxadoras de riqueza, literatura de buraco de fechadura, super-juízes com super-pata na poça, super-arguidos com boca na botija a fingir que é megafone – tudo demasiado tentador, colorido e sumarento para quem, como eu, recorda com admiração os velhos cronistas sisudos, secos e sobranceiros. Grande parte da minha geração cedeu a uma sobranceria bem mais grave -  a do engraçadismo, culminado nessa figura de estilo macabra da autocomiseração apalhaçada.  É um vício. É um vírus. É uma inevitabilidade. Eu próprio, deparado com o desafio de aqui escrever, não estava a conseguir despegar-me do sentido mais patológico da palavra “crónica” - convenhamos, era irresistível rebaixar os meus textos como quem se refere a bronquites. “Escrever como quem tosse”, diria uma Florbela Espanca nascida no último terço do século passado, e isto sobre o ser cronista: que é ser mais baixo, menor do que os homens, beijar como quem morde...já perceberam o ponto, e a minha total capitulação engraçadista. 

Se me disserem, em traços corriqueiros e laicos, que o sentido da vida é da esquerda para a direita, eu acredito e subscrevo. Isto não era uma acepção de espectro político, apenas a orientação ocidental da leitura (e a orientação oriental de jogar Super Mario). Para todos os idealistas que identificam a vida como uma corrida atrás de sonhos, eu contraponho que nós perseguimos é palavras – as que ouvimos, as que dissemos e as que ficaram por dizer. Mais simples do que estou a fazer parecer, isto é tão físico quanto filosófico. E não se trata da minha opinião, que tenho poucas: é a minha impaciência. Habita aqui a sofreguidão de passar de umas palavras para as outras; é a única forma de fazer com que o mundo se despache a acontecer. Por outro lado, cada vez que abandono os meus silêncios avisados, ou as páginas em branco sensatas, conheço os riscos de me dar a discussões que são de estagnação e estragação. Em textos de 4000 caracteres, 4001 deles têm altas probabilidades de serem pedras na engrenagem (e assim se faz autocomiseração engraçadista). Se me vierem a ler com a apatia compassiva de quem espera nas finanças, ou de quem simula interesse por bijuteria já não está mal: não há como discordar da benevolência.

Sítios certos, lugares certos e o resto:

Na minha opinião (e talvez aproveite uma destas quartas-feiras para a fundamentar por aqui) “Sully” ou “Milagre no Rio Hudson” é, com excepção de “Gran Torino”, o melhor filme de Clint Eastwood dos últimos 10 anos. Em exibição nas salas de cinema nacionais.

O Twitter manuseado por personalidades portuguesas nunca me granjeou grande encanto, nem  mesmo quando alguns comentários da eurodeputada Ana Gomes sobre terrorismo provaram o atractivo conceito twitteriano do “sítio onde se escrevem as maiores alarvidades em menos caracteres”.  Mas talvez tudo mude agora que me recordaram que o twitter é o sítio onde o enorme Rogério Casanova consegue parecer-se com o comum dos mortais.

A Casa de Hóspedes Dona Emília em Viana do Castelo é uma bofetada de luva branca em todos os desconfiados (onde me incluo) destes conceitos que evocam estéticas antigas para moldar o cosmopolitismo. Se tantas vezes dá vontade de berrar impropérios à gentrificação, e de amaldiçoar esta bronxização hipstérica de cada cantinho urbano em Portugal, num caso raro ou outro temos a felicidade de sermos arrebatados pela genuinidade do conceito, do propósito, das histórias,  das homenagens e do bom gosto. Em Viana houve arrebatamento.