A independência foi conquistada, Xanana libertado e aclamado, foi depois eleito chefe de Estado e do governo, mas a sua liderança na jovem e frágil nação ficou muito longe do sonhado. A pobreza continua imensa, os comportamentos de rapina de grupos de pressão são sentidos, a esperança dos jovens está amputada. Há uma semana, como negociador-chefe, Xanana fechou em Copenhaga o acordo, ainda confidencial, entre Timor e a Austrália, sobre partilha de petróleo e gás nas riquíssimas reservas do Greater Sunrise, no Mar de Timor. Ninguém acredita que possa brotar dali o relançamento da esperança ou que seja a fonte robusta para impulsionar a educação e o desenvolvimento.

Nos tempos da luta timorense pela liberdade, muitos caímos na tentação de comparar Xanana com Mandela, o líder africano que se tornou referência cimeira mundial com a sua capacidade para puxar o melhor de cada pessoa e de cada grupo político ou social com quem se encontrava. Mandela é alguém a quem a adversidade não quebrou, o ódio não envenenou, a política e os interesses nunca corrompeu. Mandela foi um estadista exemplar que honrou a política. Mandela mostrou que um líder com grandeza pode transformar um país, reconciliá-lo e influenciar o mundo com o seu exemplo.

Vem desse tempo, anos 90 do século XX, uma outra história extraordinária de dignidade e resistência: Aung San Suu Kyi, filha de um herói da independência da Birmânia e ela própria exemplo notável do poder dos que não têm poder. Ficou conhecida como a lady de Rangoon. Também lhe chamaram a Mandela do sueste da Ásia. Calhou-lhe lidar com a feroz ditadura de uma junta militar que oprimiu a Birmânia por meio século, a partir de 1962.

A junta militar isolou a Birmânia do resto do mundo, fechou este enorme país de montanhas, com dezenas de etnias em 60 milhões de habitantes, a todo o contacto com o exterior. Permaneceram sempre sementes da liberdade e muitas assumidas pelo NLD, o Partido da Liberdade, cuja liderança Suu Kyi, depois de se formar em Oxford em filosofia, economia e ciência política, herdou do pai. Os movimentos de resistência democrática, com Aung San Suu Kyi inspirada no pacifismo de  Mahatma Gandhi, forçaram a junta militar a convocar eleições. Estas aconteceram em maio de 1990. O partido de Aung San Suu Kyi ganhou por enorme maioria (82%), mas os militares invalidaram o resultado, mantiveram nas garras deles o domínio do país e esconderam a líder da vitória anulada encarcerada no regime, que se prolongou até 2010, de prisão domiciliária, silenciada e sem direito a quaisquer visitas ou comunicações.

Aung San Suu Kyi, a mulher de corpo esguio, franzino, que tinha sido ao longo de 20 anos símbolo internacional da resistência heroica e pacífica num país sob opressão, que tinha sido distinguida logo em 91 com o Nobel da Paz que não pôde ir a Oslo receber, reconhecida pela Amnistia Internacional como prisioneira de consciência, acabou por conseguir impor-se à mão de ferro dos militares. Nesta segunda década do século XXI, a junta militar foi obrigada a iniciar reformas políticas na Birmânia, que mudou de nome para Myanmar. Em 2011, a junta militar, que mandou durante 49 anos, anunciou a transição do poder para um governo civil – mas presidido por um general que tinha sido primeiro-ministro na ditadura. Em 2012, houve eleições parciais e Suu Kyi foi eleita para o parlamento, depois, em 2015, houve eleições gerais e o NLD de Suu Kyi triunfou.

Ela tornou-se líder política do país. Mas na sombra. Em vez de chefe do governo e ministra dos estrangeiros é “conselheira de Estado”. O cargo é um compromisso para contornar a limitação inscrita pelos militares na constituição, que barra o acesso à chefia de estado ou do governo a quem contrair matrimónio com um estrangeiro. Uma barragem específica para Suu Kyi que, quando estudou em Oxford, casou-se com um académico britânico. Mas ela é, de facto, a líder de Myanmar.

Esperava-se que ela impusesse paz na terra massacrada pelo conflito e meio século de ditadura militar. Está a falhar, ao permanecer silenciosa perante a dramática escalada de uma nova erupção de um conflito étnico que vem do tempo em que aqueles territórios coloniais sob administração britânica conquistaram a independência, uma parte como Bangladesh, outra como Birmânia, com fronteiras artificiais traçadas no mapa mas não na realidade étnica.

No centro da tragédia em curso está uma etnia desconhecida da maioria, os Rohingya, uma minoria muçulmana com mais de um milhão de pessoas. A Birmânia, com fé budista acima dos 90%, rejeitou sempre esta minoria muçulmana que se instalou nos territórios do noroeste no começo do século XIX. Na hora da independência foram considerados um mal a resolver do tempo colonial. São considerados em Myanamar imigrantes ilegais. É-lhes vedado o acesso à escola. As suas terras são confiscadas. As casas deles nas aldeias são queimadas e arrasadas. São atacados por militares, funcionários e até alguns monges budistas sob pretexto de defesa da identidade nacional.

Há um ano surgiu um movimento de resistência armada (com espadas e espingardas) de jovens rohingyas. Atacaram uma patrulha do exército e mataram sete soldados. Desde então a repressão está tremenda, com uma consequência clássica: a repressão gera mais resistência. Há relato de mais de 400 mortos nas últimas duas semanas e o êxodo de uns 120 mil rohingyas esbarra na fronteira barrada no paupérrimo Bangladesh. Há dezenas de milhares de rohingyas, com maioria formada por idosos debilitados, que procuram ajuda em campos de refugiados mas o país governado pela Nobel Aung San Suu Kyi está a bloquear a atuação de ONGs e até de agências da ONU.

Há uma evidência: Myanamar quer expulsar do seu território toda a população rohingya. Mais de um milhão de pessoas. A nobel Aung San Suu Kyi rejeita que seja uma limpeza étnica, argumenta que o que está em causa é livrar o país de terroristas. Um grupo de galardoados com o Nobel da paz escreveu uma carta à sua parceira no palmarés Aung San Suu Kyi com a denúncia de práticas que são crime contra a humanidade, com potencial para levar a genocídio.

A nobel de quem se esperava o esforço de reconciliação – como o de Mandela e até o de Xanana – está a ceder perante a hostilidade. É uma desilusão.

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