Num estádio, numa pista, numa piscina, numa cantina, num bar, numa paragem de autocarros, numa aldeia. Caem os racismos e as soberbas, gente de todas as cores, de todas a regiões e de todas as religiões, todos podem dar-se e, com alegria, com entusiasmo, sem medos, competir uns com os outros, umas com as outras. Jogar, falar, dançar, brincar. É um exemplar encontro social e humano. É um domínio em que a finança não manda, ou pelo menos não tem o poder decisivo.

Apetece abrir gavetas das memórias. 1936 foi um ano nefasto, o dos jogos de Hitler – mas também do super campeão Jesse Owens - em Berlim e do começo das matanças na guerra civil de Espanha. Tempos tremendos. Mas, 32 anos depois, veio 1968, um ano talvez o mais intenso do século XX, e presente na memória vivida de muitos de nós: foi um ano de violências e utopias, a escalada da guerra do Vietname, Bob Dylan e Joan Baez eram estrelas empolgantes na contestação à devastadora guerra; foi o ano do choque com o assassinato de Martin Luther King e de Bob Kennedy, da revolta estudantil que alastrou da Sorbonne e do Boulevard Saint Germain em Paris, aos Estados Unidos, ao Japão e a outros países, dos tanques soviéticos a invadir o coração de Praga e da liberdade, da revolução cultural de Mao com todos os excessos e purgas na China que se reclamava de Popular. Foi o ano em que o mundo sentiu um soco no estômago com as imagens trágicas da fome de morte no Biafra. Foi também o ano em que Salazar caiu da cadeira de lona na casa de férias no Estoril e assim se levantou a ilusão de alguma aragem no claustrofóbico regime político de um Portugal onde os jovens eram empurrados para optar entre o pesadelo da guerra colonial em África e o exílio nalguma França.

1968 foi ano olímpico, jogos na Cidade do México e na televisão ainda a preto e branco, mas a deixarem memórias que marcam: foram os jogos do protesto dos americanos do Black Power (Poder Negro) e do espantoso voo de 8 metros e 90 centímetros – marca que parecia fora do alcance humano - do americano Bob Beamon no salto em comprimento. O pódio da corrida de 200 metros planos em atletismo entrou para a história pela audácia política de dois atletas campeões: o medalha de ouro Tommie Smith e o medalha de bronze John Carlos, ambos negros americanos, enquanto era içada a bandeira e entoado o hino dos EUA, ergueram o punho com uma luva preta a simbolizar o protesto dos negros. O australiano Peter Norman, um branco, não levantou o punho mas levantou a voz para se solidarizar com os companheiros no pódio. Os dois americanos foram expulsos da aldeia olímpica mas o seu gesto político marcou os jogos de 68 no México tanto quanto a proeza do salto que fez de Bob Beamon uma lenda do desporto.

Vieram a seguir os Jogos de 72, em Munique. Foi a apoteose do norte-americano Mark Spitz com sete ouros na piscina, e a soviética Olga Korbut a entrar para a lenda na ginástica. Mas também houve o lado amargo com a matança de 17 pessoas (11 atletas israelitas, cinco terroristas do Setembro Negro palestiniano e um polícia alemão), num ataque que transportou para dentro dos Jogos as lutas entre palestinianos e israelitas.

Oito anos depois, 1984, foi Los Angeles: o júbilo português com o ouro da maratona para Carlos Lopes e o deslumbramento com Carl Lewis que disparou como o atleta mais completo de todos os tempos.

Continuando a avançar nas memórias, 1992 foi a vez de Barcelona. Freddie Mercury já tinha perdido a vida para a SIDA há nove meses, mas no ecrã do estádio de Montjuic e na coluna sonora a voz dele ressurgiu e uniu-se à de Montserrat Cabbalé para interpretar Barcelona, o hino oficial desta edição dos Jogos num ano de glória espanhola – Expo em Sevilha e Madrid capital cultural. Também está na memória o espetáculo dado pelo triunfante "Dream Team" do basquetebol americano, com Magic Johnson e Michael Jordan. E a imagem da americana Gail Devers que se levantou de uma doença que a tinha posto em cadeira de rodas para conquistar o ouro dos 200 metros no atletismo.

Também inesquecível o ano 2000, em Sydney, com a aborígene Cathy Freeman a ganhar o ouro dos 400 metros e o surgimento nas piscinas do torpedo Ian Thorpe. Em 2004 foi o regresso dos Jogos a Atenas. Inolvidável festa de abertura, com a Grécia a mostrar o nascimento do Ocidente e da democracia, o mito e a história.

O espetáculo inaugural tornou-se acontecimento sempre imperdível nos Jogos: em 2008, Pequim celebrou a sua conquista do topo global; Londres respondeu em 2012, colocando a Humanidade à frente da tecnologia: literatura, teatro, música e cinema, de Shakespeare a Chaplin e James Bond, passando pelos Beatles, Rolling Stones, The Queen, e até a rainha, Isabel II, ela própria, em carne e osso, no espetáculo criado por Daniel Boyle, realizador de filmes tinha como Slumdog Millionaire ou Trainspotting.

Entretanto, o mundo tinha mudado: avançava a globalização, tinham entrado o terror com o 11 de setembro e a crise financeira com o colapso de 2008 que abateu quase tudo. Os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tinham passado a contar muito na agenda internacional, portanto, também nos Jogos Olímpicos. Em 2 de outubro de 2009 o Comité Olímpico reuniu-se em Copenhaga para decidir a sede dos Jogos de 2016. A Espanha mobilizou-se para a aposta em Madrid. Tóquio investiu mas resignou-se a ficar com a edição de 2020. Obama, já presidente dos EUA, viajou à Dinamarca para defender a candidatura da sua Chicago. Mas também estava em competição um Lula triunfante a puxar pela candidatura do Rio de Janeiro. O ex-operário metalúrgico, presidente do Brasil eleito em 2003 com 54 milhões de votos, parecia protagonizar com êxito uma tranquila revolução: a economia brasileira a crescer 7% ao ano, o salário mínimo a disparar 80%, 35 milhões de brasileiros a saírem da fome e da pobreza extrema, as fundas diferenças salariais a ficarem atenuadas. Lula estava em final de mandato, a taxa de aprovação abeirava-se dos 80% e o Brasil avançava num ciclo de expansão propulsado pela descoberta de enormes reservas de petróleo na costa. Parecia ir escapar à crise que atordoava o mundo mais rico. Mas não foi assim, o tempo passou e a poção mágica que tinha puxado o Brasil deixou de funcionar.

Em 2013, o preço do petróleo desabou e com ele também caiu muito da Petrobrás que financiava generosamente o sistema político-empresarial do país. Lula já tinha esgotado o tempo de presidência e passado a liderança a Dilma. O Estado tinha menos dinheiro e o povão tornara-se exigente, saía à rua para exigir serviços públicos de qualidade. O Brasil investia milhões nos estádios para o Mundial de 2014 mas o povo reclamava hospitais, escolas e transportes públicos. Sucederam-se manifestações, cada vez mais iradas. Surgiu a Mídia Ninja com grande poder de informação e de mobilização. Tudo contra os poderes que apareciam corruptos ou incapazes. Um justiceiro de Curitiba tornou-se herói popular: o juiz Sérgio Moro, pôs-se ao comando – com espetáculo e populismo jurídico - da Operação Lava-Jato e, ao denunciar a trama corrupta de subornos e lavagem de dinheiro, meteu na cadeia empresários e políticos que antes mandavam no Brasil e desmantelou o sistema político-financeiro do Brasil. O PT, criado por Lula, após 13 anos de poder, foi devorado pelo sistema que não soube reformar. A democracia brasileira entrou em terramoto, com muitas sacanagens e abusos no turbilhão.

A decomposição do sistema de poder e o esgotamento de recursos financeiros pôs tudo em causa e fez pensar que o Rio de Janeiro – que, entretanto, declarara falência – iria fracassar na organização dos Jogos Olímpicos. O caos foi anunciado. Da desorganização, atrasos e incompetências, à insegurança, à falta de limpeza básica e até ao risco de picadas de mosquitos com ameaça de Zika. No entanto, chegou o dia e tudo funcionou. Uma belíssima cerimónia inaugural que o aclamado realizador da Cidade de Deus concebeu para mostrar a espantosa diversidade e vitalidade do Brasil. Magnífico! Tudo como deve ser, até a vaia a Temer, o presidente em funções cuja presença na tribuna, para tantos, é abusiva, usurpadora. O espetáculo dos Jogos está em curso, sedutor, a mostrar a beleza do gesto físico e a contínua superação individual e coletiva.

É facto que o Brasil nos últimos tempos andou muito para trás. A promessa ao povão de poder crescer, ler, aprender, comer duas vezes ao dia, ter trabalho, acesso à saúde, ser respeitado, lutar pelo dia de hoje e pelo futuro ficou na utopia. Até as melhorias que Lula trouxe estão em causa. Há uma revolta profunda no coração e na cabeça dos brasileiros. Mas os brasileiros, uma vez mais, saberão dar a volta.

O brasileiro médio não tem como entrar nos estádios dos Jogos Olímpicos. Mas não deixará de vibrar, tal como todos nós, com a sucessão de momentos mágicos que os ecrãs mostram nestas duas semanas de Jogos Olímpicos. O espetáculo é fabuloso, excitante, e é para todos.

TAMBÉM A TER EM CONTA:

Pelo menos 70 pessoas morreram, grande parte eram advogados e jornalistas, num ataque-suicida nesta segunda-feira num hospital de Quetta, cidade do sul do Paquistão. Que destaque tem esta matança nos media europeus? Compare-se com outro terrível massacre, o de Nice, há menos de um mês.

O que resta hoje da antiga Babilónia?

Nas noites de 12 e 13 deste agosto há que contemplar o céu. Anuncia-se uma rica cascata de estrelas cadentes. O espetáculo, tal como o dos Jogos, é fabuloso e é para todos.

Duas primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS: esta e esta.

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