1. A Coreia do Norte quer não se sabe o quê. Trump quer destruir completamente a Coreia da Norte. A qualquer momento pode começar a Terceira Guerra. Entretanto, a Segunda está de volta, bem como o Klu Klux Klan e a Guerra Fria. A Polónia teme uma invasão da Rússia. O Índico teme um novo tsunami. Furacões com nome de mulher varrem o Caribe. Cavalos marinhos agarram-se a cotonetes nos recifes. Os oceanos sobem, cheios de lixo. Povos indígenas são levados por inundações, quando não por garimpeiros. A comida não chegará, a floresta está a ser morta, a água potável vai acabar. Para não falar nos cartazes das autárquicas em Portugal.

2. Mas antes do fim do mundo, e antes mesmo das autárquicas, acaba o prazo do segundo pagamento por conta do IRS. E, de carta na mão, ou olhos no ecrã, o cidadão faz contas à vida, no seu pequeno pedaço do quase inabitável planeta Terra. Primeiro pagamento por conta, segundo pagamento por conta. Por conta do quê? Do que o Estado presume que o cidadão talvez venha a dever. Como o cidadão pode não ter condições de pagar em 2018, o Estado cobra já em 2017, mesmo que o saldo até agora mostre que não haverá nada a dever, antes pelo contrário.

Quem diz o prazo do IRS, diz o da Segurança Social, que para os cidadãos da série B, definidos como independentes, exige um trabalho extra só para a pagar. Seja como for, A ou B, com ou sem dependentes, todo o peixe miúdo está na rede dos descontos. Inspiremos fundo, os que acreditamos no Serviço Nacional de Saúde, mais fundo ainda pelo direito à reforma antes dos cem anos.

3. Porque pior, muito pior, são as corporações venderem o que não queremos como se fosse dado. Marketing de pacotes, gerando reféns, viciados, em que todos são obrigados a caber, por aparente falta de opção.

O capitalismo em 2017 é um totalitarismo com “call centers” e “colaboradores” mal pagos. Das operadoras de telecomunicações aos negócios de “fast food”, tem por ideal impedir as pessoas de entender o que lhes acontece enquanto o lucro é gerado. Vencer-nos por excesso de colesterol, ou exaustão.

4. Ainda agora foram as férias grandes, para quem as teve, e já estamos exaustos. É o regresso ao trabalho, às aulas, às birras, às filas, às mochilas, às lancheiras, às campanhas dos hipermercados, ao desconto só para aderentes. E o dinheiro para o colégio, que era para pagar hoje, e a vaga para a creche, que ainda não se sabe, e a perna à espera de operação, o ginásio à espera de tempo, o carro sem seguro, a linha do metro cortada, a casa que já não dá, os aluguéis que já não há, o inferno do IC 19, o AVC daqui a nada, o coração que não pára, o sono que não vem, o cabelo que cai, o peso que não sai, mesmo sem glúten, mesmo sem lactose, o peso em geral, mesmo sem pensar no fim do mundo, que mais uma vez aí vem.

Nem no esquentador que não acende, apesar do conserto. Nem no colchão que não passa na porta, e já partiu o espelho. Nem no papel que falta para resolver o primeiro assunto de uma longa lista, depois de termos esperado eternidades com uma senha na mão.

Até à certidão de óbito, falta sempre um papel.

5. Vivemos em falta, acossados. E há uns cinco mil anos que escrevemos sobre isso, dos assírios ao último poeta no Bairro Alto, passando por João Guimarães Rosa: nada mais perigoso do que estar vivo.

A diferença é que ainda por cima agora sabemos dos outros em tempo real, e os outros são imensos milhões. Num minuto morrem soterrados, afogam-se, pegam fogo, perdem a razão, no minuto seguinte é o passado que se levanta sobre nós, os fascismos, os exércitos, a vigilância, a violência agora actualizada pela web, branca e negra.

O mal é muito requisitado e requisita muito. Viver sempre foi a coisa mais perigosa, mas em 2017 todos os perigos estão no nosso telefone. Nunca o mundo nos pediu tanto, nunca lhe demos tão pouco. E, além das catástrofes, perdemos a peça, o filme, o livro, a estreia, não lemos o post, não respondemos ao mail, há que séculos não ligamos a fulano, e sicrano que está doente. Dia e noite somos a falta. Já nem há noite, aliás. A qualquer hora entra uma mensagem.

6. Estamos a ficar malucos, claro. Entretanto, pomos aparelhos nos dentes, compramos a agenda de 2018, planeamos o Natal, o Ano Novo, as férias do próximo ano. E hesitamos entre o barco e a fila na ponte, o balcão e a mesa, o bacalhau e o bife, o detergente azul e o verde, pôr as crianças no violino ou no ballet, e ainda assim as crianças que nascem continuam a ser poucas para a Europa. Num minuto, as notícias dizem que temos de fazer mais crianças. No minuto seguinte, que daqui a nada vamos todos para o galheiro.

7. Como este quebra-cabeças é insolúvel, em geral continuamos a acordar de manhã, mesmo que para adormecer, ou para viver, precisemos de comprimidos.

E de vez em quando até mudamos de casa. E até encaixotamos aquelas cassetes VHS que sobraram num sotão de outras vidas, porque são bons filmes, quem sabe podemos dá-los a alguém, alguém ainda será feliz por duas horas, e duas horas de felicidade são um bem tão escasso quanto a água que podemos beber sem morrer, porque entretanto poluímos o resto, etc. Um filme pode até mudar a vida de quem por alguma razão inexplicável tenha encaixotado um leitor de VHS numa arrecadação de outras vidas.

Tal como aquele álbum sobre, digamos, Santo Tirso em 1915, que pesa como um tijolo, mas ainda assim levamos de uma casa para outra, porque, lá está, nunca se sabe de onde vem e para onde vai a felicidade.

8. Claro que temos dias. Estar vivo tem dias. Esta semana calhou-me mudar de casa, de município, e da cidade para um lugar tão pequeno que nem sucursais de “fast food”, nem de operadoras de telecomunicações: a benção, deus dos acasos. Aquilo das cassetes VHS, e de Santo Tirso, é literal.

Os homens são os únicos animais que acabam com planetas, tanto quanto temos notícia até à hora de publicação desta crónica. E os únicos que, apesar de saberem que a vida não tem sentido nenhum, e que além disso ainda está em extinção, sopesam a leveza de um copo de cristal, ou perdem a cabeça com o atendente do “call center”, ou a enésima chamada que ninguém atende, ou levam o filho a andar de baloiço, ou antecipam o fim de semana em que possam dormir, ou esperam na loja do cidadão com várias senhas na mão, para poupar tempo.

Alguns até vão apanhar dois ou três transportes para no domingo votarem nas autárquicas em Portugal. Apesar dos cartazes, e mesmo não sabendo à sexta em quem votam domingo. Só sei que o meu último voto em Lisboa é para que não haja maioria absoluta.