Tirando algumas expressões chocantes na boca de um cavalheiro, as opiniões de Gentil Martins não podem surpreender ninguém. Sempre as teve, sempre as afirmou e muitas vezes, pelas posições proeminentes que deteve, moveu influência a favor delas. Um exemplo, entre muitos: quando a Interrupção Voluntária da Gravidez estava em discussão, em 2007, afirmou que os clínicos que a defendiam não eram verdadeiros médicos mas sim “licenciados em medicina”.

Gentil Martins, que se tornou tecnicamente notável pela sua perícia profissional, também sempre foi notoriamente um reacionário. Membro da Opus Dei (diz-se), salazarista (conhece-se), defensor de valores aristocráticos – do “trono e altar”, se diria no século XIX – usou a sua influência social para fazer proselitismo de ideias e princípios que já foram abandonados pela sociedade, alguns há décadas. Inclusive, quando a profissão a que pertence decretou certas certezas científicas – como, por exemplo, que a homossexualidade não é uma doença – recusou-se a aceitá-las, colocando a ideologia acima da ciência. Hoje, não é só ele que é do passado, uma vez que está praticamente reformado (pudera, com 87 anos!); as suas ideias também saíram da atualidade para o arquivo da História.

Posto isto, a questão é: qual o interesse de entrevistar Gentil Martins sobre a sua vida e opiniões? A sua carreira é pública, os seus pontos de vista notórios. Para quê ir buscá-lo aos baús onde dormem as elites de antanho e fazer-lhe perguntas cuja resposta ele já deu? Não há notícia nova, nem no entrevistado nem na entrevista. O único interesse em trazer para o palco tal personalidade é a possibilidade do fator choque. Levá-lo a dizer coisas que ofendem a sensibilidade da sociedade atual, sem nada acrescentar a debates encerrados. Mesmo sobre um assunto relativamente recente, os filhos “sem mãe” de Ronaldo, podia ter-se como certa a opinião do ancião. Para quê perguntar-lhe? Para que ele dissesse uma calinada que causasse manchetes e provocasse indignações.

A prova de que o efeito de choque foi deliberadamente provocado é a expressão chula que Gentil Martins usou para criticar Ronaldo não ter sido retirada do texto. Quem faz entrevistas sabe perfeitamente proceder a esta “limpeza”, que não altera a opinião do entrevistado mas retira-lhe a má educação e a injúria. Ou então, se não percebe se o entrevistado se excedeu inadvertidamente ou se quer mesmo figurar no papel como um grosseirão, o entrevistador pode sempre insistir: “O Sr. tem a certeza que quer eu publique isso?”, ou, mais diretamente: “Posso usar essas palavras?”. Gentil Martins, que certamente acha mesmo aquilo de Ronaldo mas tem décadas de experiência mediática, talvez preferisse o mesmo juízo moral dito de uma maneira mais suave. Ou talvez não.

Recorrer a entrevistados desbocados para reacender polémicas e vender mais, não serve o debate democrático nem esclarece a opinião pública.

O mesmo uso inapropriado do palco, por diferentes razões, pode ser alegado quanto à entrevista de Ricardo Salgado ao “Dinheiro Vivo”. Da responsabilidade do Sr. Salgado no “caso BES” (expressão curta que envolve um longo universo de irregularidades muito para lá do banco em si) não restam dúvidas. Só não se pode dizer “culpa” porque juridicamente a palavra implica condenação em tribunal, o que ainda não ocorreu; mas o que o ex-banqueiro fez, ou muita coisa do que ele fez, é do domínio público e há provas publicadas.

Quanto aos seus argumentos – que se podem resumir ao absurdo de dizer que a responsabilidade da falência do universo BES cabe ao Governo da altura e ao Banco de Portugal – também são sobejamente conhecidos. Desde que rebentou o escândalo que o "dono disto tudo" não diz outra coisa, com pequenas variantes. Para quê entrevistá-lo de novo, repetindo o dito em inúmeras entrevistas? Para quê dar-lhe ribalta, o que só pode ter duas consequências, ou não servir para nada, ou reforçar a sua defesa? Não há factos novos nem alegações novas, que seriam notícia. Há as opiniões de sempre, que só podem servir para reacender indignações e vender mais.

Em jornalismo, estas decisões rendem muito – acha quem decide. Porque depois de publicar o choque, publicam-se os efeitos do choque. Imprime-se os argumentos posteriores pró e contra. Uma não-notícia dá origem a toneladas de notícias.

Quando se fala em mediatização do noticiário, uma expressão que em si está errada, porque as notícias fazem parte da media, fala-se em transformar um facto num acontecimento. Mas também pode ser a criação dum acontecimento a partir de nenhum facto.

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