Os olhos dos benfiquistas são diferentes dos portistas?

Pois, basta olhar para os debates em torno do jogo de há dois dias. A análise de cada lance só é racional no que de racional tem a defesa do clube de cada um. Ponham à frente de 20 adeptos do Benfica um determinado lance e 19 dirão o mesmo. Ponham o mesmo lance à frente de 20 adeptos do Porto e 19 dirão precisamente o contrário. O curioso da coisa? Estarão todos convencidíssimos do que estão a dizer! Não há 19 a mentir e 19 a dizer a verdade. Todos dizem a verdade sobre o que estão a ver…

Disse 19? Sim, claro. Há sempre aquele adepto que se tenta armar em muito isento e que vai contra a sua equipa. São necessários e muito úteis, mas ninguém liga muito ao que dizem. Ou melhor, de vez em quando, a outra equipa liga, mas lá com uns insultos pelo meio.

Tudo o que disse não é novidade. Mas queria fazer uma confissão: também eu vejo a jogada e, mesmo depois deste arrazoado todo, vejo aquilo que está mais conforme os interesses do meu clube (que não vou dizer qual é, a bem da minha saúde mental).

Sim: sei, conscientemente, que estou a ser parcial, que o meu cérebro está a pregar-me truques, mas não consigo evitar. Somos mesmo tribais — a começar nos clubes e a acabar sabe-se lá onde…

Todos os clubes do mundo.

Será que o futebol é um campo propício a estas parcialidades? Pois claro que é! É um desporto competitivo seguido por milhões de pessoas. Mas o facto é que estas parcialidades, enquanto se circunscrevem ao desporto, pouco mal fazem.

O problema é que o mesmo tipo de pensamento tendencioso está em todos os campos da nossa vida: a começar pela política, onde os partidos (tão necessários, diga-se, ao contrário do que se pensa) são também clubes — ou talvez sejam acima de tudo clubes. Também podemos ver o mesmo nas universidades, onde há clubes em quase tudo (entre departamentos, entre disciplinas, entre cursos e, claro, entre universidades). E mais: nas famílias, onde cada problema acaba quase sempre por criar claques de apoio deste ou daquele; nas empresas, onde os clubes surgem como cogumelos; nos grupos de amigos; nas escolas; entre adeptos de bandas de música; entre escritores e quem escreve sobre eles — a lista é imensa.

Temos os casos óbvios: basta pensar no tribalismo religioso, pois então, que tem resultados nem sempre meiguinhos — e, depois, o tribalismo na sua forma mais pura, ou seja, o nacionalismo. As nações são agrupamentos de gente com um Estado por trás (enfim, nem sempre, mas avancemos) que aprende a História de determinada maneira, tem um território a defender, uma língua separada que serve de pintura tribal e emoções à flor da pele sempre que ouve o hino ou vê uma certa bandeira. Basta pensar na indignação que é quando alguém vem criticar a peculiar conjugação de cores da nossa própria bandeira…

Enfim, é difícil escapar a esse tribalismo: uns poderão escapar numa ou noutra área (quantos de nós não conhecemos quem se afirma rectamente imune às emoções do futebol?), mas não haverá pessoa que seja imparcial em tudo. Aliás, se existisse, não sei se seria uma pessoa assim tão interessante.

Será que todos temos razão?

Mas quer isto dizer que tudo é a mesma coisa e que todos temos razão? Nem por isso. Na verdade, às vezes temos razão, outras nem por isso. Há também gente que consegue olhar para as coisas com mais calma e outros que vão atrás da primeira indignação que lhes passar pelos olhos. Nem tudo é igual. Todos somos parciais, mas há quem seja mais cego do que os outros. Há um esforço a fazer para não nos deixarmos toldar demasiado por esse sal da vida que é a sensação boa de defender a nossa tribo.

Em certos recantos da nossa cultura, podemos, por exemplo, confiar na ciência, uma instituição pacientemente criada para ultrapassar algumas das nossas tendências e parcialidades. A forma como o faz tenta aproveitar algumas das características da natureza humana. Por exemplo, muita da confiança que pomos nos resultados científicos decorre da própria rivalidade entre cientistas: todos têm de testar o que dizem de forma muito rigorosa porque sabem que terão outros cientistas a ler e a tentar desmontar o que afirmam. Assim, o próprio cientista que está a tentar mostrar alguma teoria faz um esforço muito grande para contrariar essa própria teoria (é um dos princípios do método científico).

Este é um sistema que funciona bem em certos campos: na Física, na Química, na Biologia, por exemplo — embora mesmo aqui, quando saímos do campo científico para a rua (digamos assim), a nossa parcialidade nem sempre nos deixe aceitar os resultados (basta pensar no aquecimento global, na evolução, etc.).

Já nas nossas lides mais humanas, torna-se quase impossível ser imparcial. Ainda por cima, tudo o que tem a ver com as sociedades humanas é de uma complexidade tal que é praticamente impossível prever o que vai acontecer ou sequer perceber o que aconteceu. É por isso que, no que toca às Humanidades, qualquer tipo de arrogância é, em geral, desaconselhada. É difícil pensar, é difícil perceber o mundo, é difícil saber o que fazer…

E agora?

Dirão alguns: se não fôssemos tão parciais, talvez houvesse menos guerras do mundo — é verdade, mas também seríamos outro bicho qualquer. Mas não devemos perder a esperança. Há épocas com mais guerras do que outras. Nós, às vezes, aprendemos (para desaprender logo a seguir).

No entretanto, mais vale conversar e também lutar por aquilo que julgamos estar certo, mas começando a meter na cabeça que a outra pessoa pode estar mesmo convencida do que está a dizer e não é necessariamente estúpida por estar a dizer o contrário de nós — e até pode dar-se o caso de estarmos nós errados. A melhor forma de errar menos é perceber isso mesmo — ou se calhar é apenas uma maneira de errar melhor. Não sei, é tudo complicado.

Vejamos futebol uns com os outros, aos gritos se for preciso, mas no fim o melhor é mesmo beber um copo, sem pensar mais nos clubes. Depois, é ouvir música, dançar, conversar… Porque, ganhe quem ganhe, no dia seguinte, estamos todos na mesma e igualmente errados. Mais vale viver.

Marco Neves | Tradutor e professor. Autor do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa. Escreve no blogue Certas Palavras.

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