Agora, depois das jornadas de radicalização com arrogância e violência, todos passaram a estar contra Madrid. Andreu, o mais conciliador, escreveu: “não há o direito de tratar um povo pacífico com tanto desdém e com brutalidade assim”. Gente catalã que era contra a separação entre a Catalunha e Espanha mudou de campo neste domingo.

A inflamação do conflito entre dois nacionalismos, o espanhol e o catalão, crescia de modo inquietante há várias semanas. O que mais surpreende é a tão baixa fasquia da inteligência política do governo de Madrid, na defesa do seu conceito – que é constitucional – uniformizador e centralista de Espanha, perante a astúcia desafiadora da liderança do governo independentista da Catalunha. O diálogo político poderia ter evitado que tudo ficasse dinamitado.

Yolanda conta que sente revolta contra a intenção de humilhar. Ela recusa ser etiquetada como nacionalista catalã, prefere assumir-se soberanista, e explica: defensora da liberdade pessoal e da auto-determinação do povo catalão. Queixa-se de quererem, pela força policial com mando judicial, impedi-la de ser catalã na sua Catalunha que sempre sentiu também espanhola.

O governo de Madrid, com diminuta versatilidade analítica, cingiu-se à interpretação inflexível da constituição espanhola para bloquear o desejo catalão de consultar a cidadania. Refugiou-se atrás do sintonizado poder judicial e fez avançar as forças da polícia, para ações desproporcionadas face ao que estava em causa. Faltou-lhe sabedoria política para evitar abrir tantas feridas e ter de estar agora à procura de pontes para negociar um armistício.  É um fracasso.

A tendência continua a ser para escalada constante, acelerada, do fosso que separa a Catalunha de Espanha. O governo de Barcelona prepara-se para declarar unilateralmente a independência embora, provavelmente, com adiamento da sua aplicação. A partir desse momento, o quadro muda: em vez de ainda estar na mesa o encaixe da Catalunha em Espanha, passa a ser, na perspetiva de Barcelona, a discussão do relacionamento da república catalã com a monarquia espanhola. Algo de absolutamente impensável para Madrid.

Entre os catalães sente-se orgulho pela mobilização da cidadania que, com resiliência, de modo pacífico, está a resistir à repressão.

Em grande parte da Espanha cresce uma fúria contra as aspirações catalãs. As vaias a Piqué nos treinos da seleção espanhola de futebol são apenas uma pequena amostra.

A consulta ao povo catalão há muito deixou de poder ser homologada como um referendo. A repressão pelo Estado do espetáculo da consulta foi um erro descomunal que fez mudar a sensibilidade de tanta gente como os muito moderados Andreu, Jordi e Yolanda. Todos com posicionamento político muito em volta do centro.

O que está a acontecer não podia acontecer, não pode continuar. Alguma coisa tem de ser feita para aliviar a tensão e começar a construir pontes. É uma lástima que ninguém respeitável esboce um gesto para abrir a mediação.

Há um silêncio que merece ser ouvido: é o do rei. Felipe VI ainda não disse uma palavra sobre esta crise, a mais séria no seu reinado. A constituição espanhola define que o rei é o chefe de Estado, símbolo da unidade e da continuidade, arbitra e modera o funcionamento regular das instituições. Foi notado, nos últimos meses, o relacionamento cordial entre o rei e o presidente do governo da Catalunha.

Talvez o rei possa ajudar à reabertura de algum diálogo político. A Espanha, sendo uma nação de nações, talvez tenha de ponderar o caminho para estado federal.

Essencial é que seja retomado o diálogo político. A Espanha tem uma longa experiência de como a negociação abre caminhos. A política espanhola soube neutralizar o tremendo terrorismo basco que em quatro décadas levou mais de 800 vidas. Houve recurso à força, mas também, sobretudo, à inteligência e à negociação política. Resultou.

Vale ver:

Retratos de um dia que a Catalunha não vai esquecer. 

A tremenda matança em Las Vegas é mais um teste à América.

As mulheres sauditas tomam o volante. Mas ainda falta percorrer tanto caminho para que possam ser independentes de um guardião (marido, pai, irmão) para poderem viajar, para poderem abrir conta num banco, para poderem discutir a tutela dos filhos.