Ontem, dia 8 de outubro, cerca de meio milhão de pessoas ( os números oscilam entre 950 mil, segundo os organizadores e 350 mil, segundo a polícia) saíram para a rua em Barcelona a declarar-se contra a independência da Catalunha. É a primeira vez que há uma grande manifestação pró-Madrid, demonstrando que, mesmo entre os catalães, a questão da secessão da Espanha não é pacífica. Até agora só se tinham pronunciado as multidões pró-independência. A favor, apenas pequenos grupos do PP espanhol e franquistas, o que terá levado a que aqueles que ontem foram para a rua tenham anteriormente ficado em casa – como no dia da votação – por não se quererem identificar com os saudosos de Franco e o partido de Rajoy.

O clima tem estado tenso em Barcelona e nas principais cidades e a situação que se vive é tudo menos linear. A esquerda favorece a independência – mas a principal força independentista, a Convergência Democrática, CDC, é considerada de direita, assim como a coligação actualmente no poder, JxSí (Junts pel Sí), presidida por Carles Puigdemont, e constituída por partidos tanto de esquerda (ERC e CUP, marxista) como de direita (CDC e DC), unidos apenas pela vontade de independência. Do lado anti-independentista há partidos de esquerda, como o Podemos, e de direita, como o Partido Popular.

Mas vamos por partes.

A Espanha, tal como existe desde o século XVIII, é formada por um conjunto de nacionalidades que se foram submetendo ou juntando a Castela, quer através de casamentos e tratados, quer por conquista. Nós próprios, portugueses, fizemos parte de Espanha entre 1580 e 1640, através de D. Isabel, filha de D. Manuel I e mãe do Rei de Espanha, Filipe II (que viria a ser o nosso Filipe I). Em 1640, ano em que Portugal recuperou soberania, os catalães também se revoltaram contra o domínio de Castela, obrigando Filipe IV (nosso Filipe III) a dividir as suas forças,  o que nos terá permitido ganhar a guerra da independência, enquanto os catalães perderam a deles. Esta coincidência tem sido apontada por certos comentadores como dando aos portugueses uma espécie de “obrigação” de apoiar a independência da Catalunha, como uma espécie de retribuição. De facto, tratou-se tão somente de uma coincidência - os catalães não se rebelaram para nos favorecer. Voltaram a revoltar-se no século XVIII e foram derrotados definitivamente por Filipe V. Em 1715 a Espanha tomou a forma territorial que conserva até hoje.

Dos reinos de Espanha – Astúrias, Aragão, Galiza, Leão, Navarra, País Basco e Catalunha, estes dois últimos é que têm historicamente oferecido mais resistência ao domínio de Castela. Aragão e a Catalunha estão juntos desde o século XII, quando o Conde de Barcelona casou com a rainha aragonesa.

No século XX, a Catalunha chegou mesmo a declarar-se independente duas vezes, no período da República Espanhola: em 1931 e, durante oito horas, em 6 de outubro de 1934. A proclamação de Lluis Companys, em 1934, levou a que o General Domingo Batet, também ele catalão, mas fiel a Madrid, mobilizasse as suas forças e terminasse com o golpe no próprio dia, assim como com a autonomia da Catalunha. Seguir-se-ia a Guerra Civil e em 1938 Franco não hesitou em fuzilar milhares de catalães, inclusive Companys. Durante o período franquista a língua catalã foi proibida, assim como qualquer manifestação ou sinal de independência.

A autonomia voltou em 1977, após a instauração da monarquia e em 2006 os poderes autónomos da região foram bastante ampliados. Mas, em 2010, o Supremo Tribunal, em Madrid, revogou parte desses poderes e voltaram a fazer-se ouvir vozes independentistas. Usando a sua maioria parlamentar, em setembro de 2017, a coligação pró-independentista no poder, a JxSí liderada por Puigdemont, fez aprovar a realização de um referendo sobre a independência. Os partidos da minoria limitaram-se a sair da sala durante a votação.

A argumentação de Puigdemont não é exclusivamente política, embora os seus inimigos digam que ele quer forçar a independência por razões de poder pessoal. Economicamente, a Catalunha é a região mais rica de Espanha, contribuindo com 20 por cento do PIB nacional; se fosse independente, teria um PIB superior a Portugal, tendo metade dos habitantes. No entanto, as suas prioridades, como uma ligação rápida de comboio entre a cidade e o aeroporto, não têm sido incorporadas nos orçamentos de Madrid. Isto, com indicadores económicos superiores aos da Espanha e um desemprego abaixo da média nacional. Culturalmente, tem uma identidade própria, conhecida no mundo, um idioma (que também é falado em Andorra e regiões de França), uma arquitectura notável e grande vitalidade artística e cultural de cunho original.

A estranha associação de forças de esquerda e direita a favor da independência deve-se a factores diferentes. Para a esquerda, trata-se de afirmar a liberdade negada pela História e a possibilidade de criar uma República, sem a tutela dos odiados Bourbons e a direcção do PP em Madrid. Para a direita, contam os interesses dos grandes capitalistas catalães, que acham que sozinhos terão mais possibilidades do que em Madrid para obter benefícios legais e fiscais, e mudar certas leis no seu interesse.

As forças que se opõem à separação (e que aprovaram a Constituição espanhola em 1978 com 90% de votos) alegam que a interligação dentro da península já tem séculos – 18% da população da Catalunha não é catalã e centenas de milhares de catalães vivem e trabalham no resto da Espanha — e que a economia regional beneficia com as dimensões do mercado espanhol e, por extensão, europeu.

A outra questão que se apresenta é, precisamente, que lugar poderia uma Catalunha independente ocupar na Europa. À partida, os países da UE não são favoráveis à secessão, primeiro porque constitucionalmente é uma questão interna espanhola, segundo porque muitos deles têm movimentos separatistas mais ou menos activos aos quais não querem dar força. O conceito de Europa é agregar áreas cada vez maiores, não pulverizar-se em zonas mais pequenas. Quanto ao direito a autodeterminação, expresso na Carta das Nações Unidas, aplica-se especificamente a colónias e territórios ocupados. Não há uma provisão que faça doutrina de que a independência completa é a melhor forma de auto-governo, no caso de regiões dentro de um Estado.

Portanto, a ideia de que uma Catalunha independente se tornaria imediatamente membro da UE não é expectável. As negociações, se a Europa as aceitasse contra a vontade da Espanha, levariam anos. Quanto a poder negociar à vontade com o mundo e ter uma economia auto-sustentável, é um facto por provar. A Grã-Bretanha, que está a tentar fazê-lo há um ano, a pensar no pós-Brexit, não conseguiu para já grandes resultados. Nos últimos dias, só com a ameaça de independência, treze grandes empresas anunciaram que abandonam fiscalmente a Catalunha, entre elas dois bancos.

Todavia, quaisquer que sejam as razões dos dois lados, a questão agora é outra; como resolver o impasse criado com a teimosia mostrada pelas partes, que têm agido contra opiniões mais ponderadas dentro e fora de Espanha. Barcelona tomou uma atitude ostensivamente desafiadora, ao promulgar um referendo constitucionalmente ilegal e ao usar o resultado, bastante questionável, para anunciar unilateralmente a independência.

Madrid mostrou-se inflexível, não optando, como se pensaria, em ignorar o referendo, pelo menos até saber o resultado. Enviar a Guardia Civil e o Exército para a Catalunha e proporcionar imagens  (verdadeiras ou falsas, é o que também se discute) de agentes cobertos de kevlar (fibra usada em produtos de segurança) a bater em avós não é um bom exercício de relações públicas nem favorece consensos. O discurso do Rei, considerado tão parcial que dizem que foi escrito por Rajoy, foi uma oportunidade perdida de acalmar os ânimos.

A solução mais pacífica, neste estado de coisas, seria a proposta, que parece que ter sido já sugerida por Madrid, de realizar novas eleições para o Parlamento da Catalunha. Na esperança de que o equilíbrio partidário saído dessas eleições torne o independentismo impraticável, por vontade expressa dos catalães. Mas Puigdemont parece decidido a levar a tentativa de independência até a fim, calculando que Rajoy não ocupará militarmente a Catalunha. Para a realização de novas eleições é preciso o voto maioritário no parlamento catalão, que Puigdemont não vai arriscar.

Os catalães, esses sentem-se empurrados para uma disputa que não queriam. Uma grande maioria gostaria de votar, mas apenas uma pequena maioria votaria ficar em Espanha.

Os próximos dias serão cruciais.

* Para onde vais, Catalunha?