Há, nos computadores e na Internet, tal como Eco soube antes de todos, uma perversão do tempo, no que ao passado e à História diz respeito. Vejamos o 'word' em que agora escrevo. Se não o sinalizar com uma data, basta um dia mudar-lhe vírgulas para que ele assuma o tempo novo e revisto; e perde-se para sempre o dia em que escrevi primeiro. Por velhice ou sabedoria – ou as duas coisas entrelaçadas –, Umberto Eco ficou-se pelos livros, quer os ensaios que enunciou abundantemente enquanto académico, quer os romances que, segundo ele, começou a escrever quando já tinha feito quase tudo – ou seja, aos 48 anos. Ou ainda, e sempre numa versão do próprio, porque quando não se pode teorizar deve narrar-se.

O que é um pouco a vida que lhe fui apercebendo. Um homem que dizia que a mentira tem muito mais interesse do que a verdade – 'o que torna os signos interessantes não é servirem para dizer a verdade, mas poderem ser usados para mentir ou falar de coisas que nunca vimos' –, tinha por força de ir além da criação de uma ciência. Para quem, como eu, ainda hoje ser semiótico e não semiológico faz quase tanto sentido como a frase de Bond 'shaked not stirred', é evidente que se pode ler Eco no esoterismo ou na sua recriação quase cómica. E no entanto – lembram-se? - foi por causa do riso que morreram frades.

Aliás, numa das suas últimas entrevistas – já se pode dizer últimas, e não 'mais recentes', porque a morte dá-nos o direito a só ter passado -, o professor de Bolonha e autor de 'O Nome da Rosa' anunciava que não tinha ainda iniciado a sua próxima obra, que era um ensaio sobre a comédia. Não teve tempo. Alguém aí para o fazer? Não se importará Eco, de certeza, com isso. Não um homem que dizia que a literatura universal era sempre repetição, e que já Homero repetia a tradição oral, milenar, anterior a ele. 'Se os textos são máquinas preguiçosas que precisam da colaboração do leitor, então este, quando passa a escritor, reescreve essa mesma obra que o influenciou'. E 'quando lemos um livro devemos perguntar a nós próprios não o que diz, mas o que significa'. Foi ele que disse, e já não pode voltar com a palavra atrás.

Lembro-me bem do dia em que Umberto Eco me foi apresentado. Lembro? Não, minto. Sei porque dato os livros que vou comprando, e a minha memória é tão só isso e o efeito que me ficou de os ler. É um daqueles ensaios curtos, sessentistas, sem data por mim descoberta mas exalando data no que escreve, que o autor publicou por volta da 'Obra Aberta' e dos 'Apcalípticos e Integrados'. Era sobre vestuário, uma paixão minha antiga, que Eco titulou de forma banal 'O Hábito faz o Monge'. Nos livros, como ele dizia, por vezes procura-se uma forma de nos justificarmos; e eu fiquei contente, naquele Fevereiro de 79 em que li o texto, quando ele me disse que, no que vestimos, está uma forma de nos exprimirmos, que é algo mais do que comunicarmos e diferente de exibirmo-nos. Daí partia para a arte da sedução pelo gesto/signo, os trajes do teatro como denotações, ou a mini-saia, que naquele tempo, dizia ele, na Catânia [Itália profunda] transmitiria a ideia de uma rapariga leviana, em Milão a de uma rapariga moderna, em Paris a de uma rapariga, tão só, e em Hamburgo, no 'red district' da Rieperbahn, poderia muito bem ser um rapaz...

Sobre o islamismo e a sua invasão da Europa, assume a sua faceta de 'pop-star' que é um pouco parte da sua segunda metade da vida

Falava de religião mas não esquecia o diabo. Era tão incoerente como qualquer um que muito pensa, muito escreve e muito diz. Na revisitação que lhe faço, à hora da sua morte, encontro o que sempre dele tive – umas coisas sim, outras coisas não. Umberto Eco é, para além de um precursor, um 'self-service' de citações. Não esqueceu que a religião tanto pode ser, como dizia Marx num dia aziago, o 'ópio do povo', como a sua cocaína, porque para muitos funciona como um despertar e acelerar a revolta, tida como redenção.

Sobre o islamismo e a sua invasão da Europa, assume a sua faceta de 'pop-star' que é um pouco parte da sua segunda metade da vida. Tão depressa lemos textos em que fala de 'nazismo islâmico' – mas pior que o primeiro, porque este está no meio de nós, não para lá de uma fronteira de guerra que dele nos separa, e que nos permitiu combatê-lo eficazmente, segundo Eco – como em seguida se mostra entre o justificativo e o complacente para com as migrações actuais. Umberto Eco era um europeísta convicto. Em dez minutos, no mesmo texto, assume o terror pelo futuro dos netos, numa sociedade islamizada e numa Europa que 'vai mudar de cor', na qual vai 'correr muito sangue', logo antes de afirmar que, quem não encarar a mudança - que prevê inelutável – 'mais vale suicidar-se'. Acredita que, um dia, se encontrará um novo equilíbrio, como depois das invasões bárbaras no Império Romano, mas que antes acontecerá 'algo de terrível'.

Mas culpa a França, por ter querido impor a ética da República aos migrantes – ele não põe 'i' antes da palavra – sem nunca ter conseguido integrá-los, afastando-os para guetos nos subúrbios. 'Se os muçulmanos morassem em redor de Nôtre-Dame seriam diferentes', sustentou já depois dos atentados ao 'Charlie Hebdo'. 'Um muçulmano em França torna-se fundamentalista porque a sua integração não foi completa nem podia ser, a longo prazo pode haver integração, mas no curto não; e a não integração produz uma reacção que só pode ser o ódio', afirma. Parece óbvio, que para o historiador/filósofo, o 'longo prazo' tem uma largura imensa.

Um homem que, de si próprio, dizia que o fim da vida lhe tinha dado para odiar a Humanidade, continuava a ser um optimista a quem, aparentemente, tinham roubado o húmus de que alimentava essa esperança, roteada na guerra erm Itália e nas esquinas onde se escondia, diz ele, 'porque numa esquina há sempre dois lados para onde fugir'. Da Universidade onde passou grande parte da vida – principalmente em Bolonha, mas convidado em Columbia, Toronto, Harvard, Collège de France e mais meia dúzia – dizia agora que era boa ideia tê-la aberto a tanta e tanta gente. Mas logo depois aduzia que o facilitismo recente encerra uma perversão inelutável. 'Nos três primeiros anos [das faculdades] os alunos não lêem livros com mais de cem páginas; no meu tempo tive que ler milhares e milhares de páginas e não morri por causa disso', desabafava.

Termino com uma nota pessoal. Umberto Eco, a certa altura, 'meteu-se' com o Super-Homem. Não um ensaio sobre Nietzsche, mas sim sobre o personagem da BD americana. Sob o seu olhar semiótico – que não é, cedo uma vez mais à anedota, ver só com um olho -, o leitor das aventuras do 'homem de aço' inventado por Jerry Siegel é subjugado à condição de fantoche dominado pela propaganda do poderio norte-americano, ilustrada na força do super-herói que tudo resolve em três tempos. Uma imagem que faz ascender o cidadão comum, personificado pelo seu alter-ego Clark Kent, ao seu desejo de perfeição, ao rechaçar da sua impotência para vencer as frustrações. Baseado no que lhe impelem as aspirações de status, de nível social, inconscientemente integrado, o sujeito esquece-se e perde a sua identidade.

Mas eu sempre quis ser Clark Kent. Já não vou poder perguntar a Eco se tenho alguma coisa de errado.