1. Depois de amanhã, correndo tudo como previsto, aterro nos Estados Unidos da América pela primeira vez desde que Donald Trump foi eleito presidente. Esse incrível sufrágio, de algum modo um naufrágio, já se deu há mais de um ano, mas continua a parecer tão incrível agora como então. Estou para ver como será na origem, de perto e ao vivo.

Para já, esta foi a semana em que Trump fez o seu discurso sobre o Estado da União, tradição que remonta ao século XVIII. Nessa época, claro, não havia forma de detectar erros no discurso quase em tempo real, mas desde que é possível fazer isso nunca os detectores foram tão solicitados. Alguns foram mesmo abaixo, com o peso da demanda. Ajuda o facto de Trump ter feito o terceiro mais longo discurso desde 1966. Só a lista de problemas no “New York Times” tem o dobro dos caracteres desta crónica. Cotejei algumas (a partir do “NYT”, da “New Yorker” e do FactCheckOrg) para levar na bagagem. Desde 2013 que não vou aos EUA, o que parece há séculos, tendo em conta tudo o que entretanto nos aconteceu.

2. Uma boa fatia das mentiras, deturpações ou exageros tem a ver com economia, supostamente a área em que Trump teria mais hipóteses de não derrapar, primeiro porque alguns dos indicadores são bons, e segundo porque, supostamente, o que ele sabe fazer na vida é ter dinheiro.

Começando pelos salários. “Finalmente, os salários estão a subir”, autocongratulou-se Trump. Ora, de acordo com o Bureau of Labour Statistics, os salários estão a subir desde os anos 1990, e na era Obama subiram 4,1 por cento. Não só a tendência de subida vem de antes como, na verdade, caiu um pouco no último trimestre de 2017, primeiro ano de Trump na Casa Branca.

Passando ao desemprego. Trump reclama a criação de 2,4 milhões de empregos. De facto, o número de empregos criados desde que tomou posse é de 1,84 milhões. E antes da sua eleição o ritmo de criação de emprego era maior.

Ainda em relação ao desemprego, Trump mencionou especificamente o desemprego afro-americano, ou seja, dos negros, destacando o facto de agora ser o mais baixo de sempre. De facto, tem baixado desde 2010 (quando a taxa estava em 16,8): no fim da era Obama estava em 7,7, e está agora em 6,8. Dificilmente atribuível a Trump, pois.

Mais exemplos de problemas, no afã de demonstrar que grandes investimentos estão em curso. Trump disse que a Apple vai investir 350 mil milhões nos EUA. Na verdade, só 37 desses mil milhões são novos. Também anunciou que a Chrysler ia transferir uma grande fábrica do México para os EUA. Na verdade, só vai deixar de produzir camiões lá e passará a produzir carros, mas manterá essa fábrica no México, como outras. Trump também disse que vários fabricantes de automóveis vão finalmente abrir novas fábricas, mas isso já estava acontecer desde a era Obama, e o emprego no sector na verdade baixou no último ano.

Finalmente, quando aos recordes na bolsa, também já estavam a acontecer na era Obama.

3. Em mais de hora e vinte de discurso, Trump falou muitas vezes em “força”, “segurança” e crime, para associar quase sempre isso aos imigrantes, uma das suas batalhas. Milhões de centro-americanos correm o risco de serem deportados de volta a situações de extremo-risco, depois de muito tempo nos EUA. Trump cancelou o programa DACA, que permitia a muitos, vindos para os EUA enquanto crianças, ficarem no país. No discurso de terça-feira, reafirmou a sua intenção de construir o muro ao longo de toda a fronteira entre o México e os Estados Unidos. Sendo que a maioria das travessias se faz em zonas onde já existe muro ou vedação. Só em 30 por cento dos casos essas tentativas de passagem são feitas em zonas não bloqueadas.

Os verificadores de factos apontaram dois erros básicos a duas passagens do discurso relacionadas com imigração. Uma, foi quando Trump saudou o fim da “lotaria dos cartões verdes”, dizendo que finalmente ia pôr cobro a esta situação em que o cartão verde — de residência nos EUA — é atribuído ao acaso, sem ter em conta as capacidades dos candidatos nem a segurança dos americanos. Várias vezes errado. O “green card” exige uma série de requisitos: registo criminal. exames médicos, diploma de liceu ou experiência profissional de dois anos, além de que cada candidato é morosamente vistoriado durante meses. Qualquer pessoa que já se tenha candidatado a um visto para os EUA sabe que não é pêra doce responder a qualquer questionário de visto de visita quanto mais de residência. A parte da lotaria, do sorteio, só entra a partir do momento em que há “x” candidatos elegíveis. Ou seja, sim, há um sorteio mas entre pessoas que já foram detalhadamente vistoriadas, e preencheram vários requisitos.

O outro ponto enganoso tem a ver com a reunião familiar. Trump disse que até agora fosse quem fosse com “green card” podia mandar vir um “número ilimitado de familiares”. Na verdade, qualquer pessoa com cartão verde pode fazer o pedido para qualquer familiar, mas a aceitação depende de vários factores. Há nomeadamente um limite anual para familiares adultos e casados. Todos são, mais uma vez, morosamente investigados. E a prova disso é que 3,9 milhões estão em fila de espera, alguns há 15 anos.

4. Para reforçar a tónica do medo durante o discurso, Trump tinha presentes na sala, como convidados, familiares de pessoas assassinadas pelo MS13 (ou Mara Salvatrucha), um gangue salvadorenho-estadounidense. Como fez questão de falar em “vaga de crimes”, associada a imigrantes.

Vale a pena ler o comentário de Paul Krugman (Nobel da Economia) no “New York Times”. Boa parte do discurso de Trump foi passado a falar de crime violento e imigrantes de uma forma racista, sim, diz ele, mas não só: mentirosa. Porque “não há qualquer vaga de crime” neste momento, como acontecia nas décadas de 1970 e 1980. Ao contrário, refere Krugman, o que há é um grande aumento de população de origem estrangeira e “uma queda quase inacreditável do crime violento”.
Mas Trump tem de tentar agradar a quem o elegeu sob o signo do medo ou da desconfiança. Há um ano, a percentagem dos que o desaprovavam era de 41 por cento. Agora é de 50 por cento, e em Dezembro estava em 55.

5. Quanto ao ISIS, o actual presidente também se auto-congratulou por o ISIS ter sido erradicado em “100 por cento” do território que ocupava no Iraque e Síria. Na verdade, ainda não chegou a 100 por cento, mas sobretudo esse processo vem da era Obama.

6. Finalmente, Trump não resistiu a torcer um pouco mais a verdade também no pós-discurso. Fez um tweet a celebrar a audiência de 45,6 milhões, “o número mais alto da história”. Verificou-se que, na verdade, Obama, George W. Bush e Clinton todos tiveram audiências mais altas. por exemplo, o primeiro discurso de Obama emn 2009 teve 52,4 milhões.
Em suma, da economia à imigração, da televisão ao ISIS, a verdade nunca basta a Donald Trump. E em vários casos atrapalha.

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