Talvez por isso, a bicicleta se tenha transformado na minha melhor amiga durante a adolescência. Só comprei um automóvel quando comecei a trabalhar e os horários apertaram. Não só as distâncias eram incompatíveis com o pedal, como precisei, muito cedo, de encurtar o tempo entre as distâncias. O carro passou, com um misto de alegria e desilusão, a ser o meu grande companheiro. 

No entanto, lembro-me de circular na Av. Marginal de bicicleta e, se me apetecesse, fazê-lo na estrada. Também me recordo de circular no centro da vila e de me deslocar ocupando o meu lugar na estrada sem me sentir a mais. Hoje, não é assim. Ou perdi um certo arrojo da adolescência ou as estradas encheram-se de veículos, tornando-se mais perigosas. Do que vejo, oiço dizer e leio, há uma espécie de guerra aberta entre os (supostos) malucos das bicicletas e os outros, confortavelmente sentados no seu "Mercedes", que é sempre maior do que o dos outros. Há outra abordagem ao tema, a da comparação entre Lisboa e as cidades escandinavas, nas quais a bicicleta é rainha e senhora das estradas. 

Em qualquer dos casos, não creio que exista um fundo de razão. Lisboa não é Copenhaga ou Amesterdão. A diferença não é apenas geográfica mas, principalmente, cultural.

Associamos a bicicleta a momentos de lazer ou a uma forma de circulação antiga, um pouco provinciana. Se é certo que é comum utilizar a bicicleta como actividade desportiva ou para passeios de fim de semana, também é verdade que, antigamente, muitas pessoas na aldeia se faziam transportar de bicicleta. Na cidade viviam os mais letrados e modernos.

A Lisboa que Eça descreveu era um local pedante, cheio de traços de novo riquismo que a nossa entrada para a União Europeia e o dinheiro da Europa, no final do século XX, vieram replicar. Construíram-se estradas para os carros que já todos podíamos comprar. Os transportes públicos ficaram para quem não tinham outro meio e os poucos que entenderam a vantagem de os usar. Durante algum tempo,  as bicicletas foram vetadas a um certo ostracismo, até alguém se lembrar que, com os pneus certos, seriam óptimas para subir montes.

É então que a sociedade começa a perceber as vantagens de se mexer, praticando exercício para compensar as horas sentadas no emprego, no sofá da sala ou nas deslocações feitas... de carro. Para muitos, os transportes não podiam ser solução. Da mesma forma que o crédito estimulou a compra de veículos, também nos venderam a ideia de que comprar casa seria o melhor do mundo. E surgiram prédios e bairros que fizeram alargar o conceito de subúrbio nas áreas metropolitanas das cidades de Lisboa e Porto.

Para quem reside em Cascais, tal pode significar morar num apartamento na Aldeia de Juzo que fica a 5 quilómetros, 15 minutos de carro ou uma hora a pé da estação de comboios mais próxima. Ou chamarem-lhe Almada e ser algures num bairro longe de qualquer transporte. As estradas, essas que a Europa pagou, encheram-se de veículos que passaram a dominar a cidade, onde ainda estão as principais empresas ou universidades. Para quem consegue viver no centro, a cidade tornou-se caótica, sem espaço para peões. Menos ainda para bicicletas. 

No entretanto, as pequenas mudanças vão acontecendo. Perder duas horas sentado no carro é, para muitos, um inferno. Os transportes no centro da cidade são maus e as bicicletas voltaram a ganhar algum espaço. Dizem que Lisboa não é uma cidade ciclável mas isso não é verdade. Muitos condutores não aceitam que outros ocupem espaço na estrada. Isso sim, é verdade. Já tive oportunidade de me deslocar de bicicleta e, durante uns tempos, optei por andar de mota. Não fosse o seu poder de arranque nos semáforos, poucos eram os que aceitavam bem a minha presença.

Como em tudo, do outro lado da moeda, também há muito a dizer sobre quem anda de mota mas, na verdade, tudo se resume a uma questão muito simples: quando vamos no passeio a caminhar não abalroamos uma pessoa porque esta se desloca mais devagar, pois não? Então porque raio alguns condutores acham que notas e bicicletas não podem ter o seu espaço na estrada?