1. 2017 acabou com um amigo brasileiro a pedir conselho sobre morar em Lisboa, e 2018 começou com outro amigo brasileiro a pedir conselho sobre morar em Lisboa.
Isto aconteceu exactamente ao contrário há meia-dúzia de anos, quando eu morava no Rio de Janeiro, o Brasil se anunciava como a sexta economia do mundo e Portugal estava nas mãos de Passos, Portas & Troika: comecei a receber cada vez mais mensagens de portugueses que queriam mudar para o Brasil.
Apenas há meia-dúzia de anos. Como picos e abismos trocam de roupa rápido. Sempre bom lembrar isso, em cima ou em baixo. Toda a euforia desce a montanha russa. Para quem tem noção do fundo, a vida é geralmente bipolar.

2. E o capitalismo global alimenta-se da hipotética alternância entre falta e desfrute. Dessa possibilidade, ou da sua ilusão.
Em 2010 demorei a achar casa no Rio de Janeiro, quando achei foi acima do limite que fixara. Hoje acharia abaixo disso e o real vale bem menos, o que tornou certamente mais barata a vida dos estrangeiros que moram no Rio ganhando noutra moeda, mas certamente não a dos cariocas. Contas feitas, quase todos os brasileiros que conheço vivem com muito mais aperto do que há meia dúzia de anos. Fora enfrentarem um presidente golpista, prefeitos bispos da IURD, gangsters no Congresso, gangues de neo-puritanos, milícias pelo regresso da ditadura, racistas, homofóbicos, machistas. Uma estupenda resistência diária sobretudo para os milhões de filhos, netos, bisnetos de pobres que viveram a era do lulismo como a da primeira esperança de acesso a universidade, carteira de trabalho, cuidados de saúde, incentivo à cultura, viagens pelo país e pelo mundo.
O Brasil que resultou destes últimos vinte anos tem muitos licenciados, mestrandos, doutorandos sem a rede tradicional dos filhos da elite que sempre se deram ao luxo de sonhar com o M.I.T ou com o dolce far niente. São centenas de milhares de brasileiros contando apenas ou sobretudo com o seu esforço, muitos deles apanhados pelo desmantelamento em curso do ensino público e da investigação no Brasil, com universidades abandonadas pelo poder político. Toda uma geração entre os vintes e os trintas que há meia-dúzia de anos se via com a mão na massa de um novo Brasil, do interior às grandes periferias urbanas, e agora busca oxigénio para o sufoco. E pela língua, pelos contactos, pela recuperação da economia, Portugal volta a ser um destino, temporário ou nem tanto.

3. Não me refiro aqui aos brasileiros gold que vejo, ouço cada vez mais em Portugal, até porque em geral se fazem ver e ouvir, entre comboios, aeroportos, lojas, restaurantes, e não se poupam a um rol trocista em relação aos nativos. Parte da pior classe média brasileira, tão preconceituosa lá como cá. Esses nunca terão problemas para alugar casa em Lisboa, apesar de não terem interesse em conhecer melhor os portugueses. Chegam com dinheiro de sobra para comprar, e o imobiliário português tornou-se um óptimo investimento, muito melhor do que juro de banco brasileiro.

4. Não. Os amigos que me escrevem têm outro tipo de problemas. Escrevem depois de penarem à procura de casa. Querem saber se ainda é possível achar algo junto da Linha Verde ou Amarela do metro, porque vêm para um ano-sanduíche de doutoramento que os fará circular entre Entrecampos e o Chiado. Vejo que já penaram de facto visto que a pergunta seguinte é se Almada é um bom lugar para morar, portanto mesmo à distância já lhes terá chegado a notícia de que talvez se tenha tornado impossível morar em Lisboa sem uma bolsa generosa, ou intervenção divina.

5. E que lhes posso eu dizer, lisboeta de quase toda a vida, que este ano acordou no primeiro de Janeiro como munícipe, eleitora, utente do centro de saúde de outro concelho, a uma hora e meia de Lisboa em transportes públicos? Talvez, por exemplo, que ontem quando fui apanhar o autocarro que me leva ao comboio encontrei por acaso um grupo de brasileiros entre os vintes e os trintas, alguns a estudar ou trabalhar cá, que me actualizaram em relação ao preço dos quartos em Lisboa. Eu disse quartos, não casas. Quinhentos euros sem janela, que tal? Há pelo menos quem tente, será que há quem aceite?

6. Claro que penando mais ou menos se hão-de achar casas para dividir por menos, até com algum lance de céu. No capítulo dos milagres conheço mesmo um ou outro. Mas em geral, do que ouço de amigos lisboetas com prática, não é mesmo fácil achar nada junto à Linha Amarela, Verde ou Azul, que seja, do metro. Talvez a partir da Reboleira, estação terminal sobre a qual me tornei mais habilitada para falar do que sobre os novos bares de Lisboa.
A verdade é que estou completamente desactualizada, do co-work ao chocolate quente com vista para o Tejo. Qualquer jovem parisiense do eixo Praça das Flores-São Bento sabe melhor do que eu onde comprar legumes biológicos.

7. Sim, caro amigo, Almada é uma boa em 2018. Quanto a chocolate quente nada sei, mas continua a ter a melhor vista para Lisboa enquanto não destruírem, ou construírem, o Cais do Ginjal. A viagem de barco é um instante, e o Tejo aquela maravilha enquanto não secar. Pegando num compasso, alargando bem o ângulo, quase qualquer lugar da cintura lisboeta pode ser uma hipótese a considerar em 2018. Almada, que fica a Sul, além de barco, tem comboio. Norte, Leste e Oeste vivem da combinação metro, autocarro e comboio. E em qualquer direcção se vai sentir o que Lisboa está a mudar, até porque muitos lisboetas deixarão a cidade. A cintura empurrará a cintura para cada vez mais longe. Daqui a meia-dúzia de anos talvez Almada já não seja uma boa porque ficou um luxo.
O Porto que me desculpe, infelizmente nunca morei mais do que um mês lá, e isso foi há séculos, antes de o Brasil redescobrir Portugal, portanto não posso falar da evolução imobiliária local (ou de alguma outra das maiores cidades portuguesas), embora tenha ecos de que, com o actual boom portuense, também já foi bem mais fácil alugar casa.
De resto, não conheço um só apartamento para alugar em Lisboa, e a última vez que pus um anúncio no Facebook, procurando casa para amigos, só tive respostas de fora de Lisboa. Então, o que posso dizer aos amigos brasileiros que pensam morar em Lisboa é que a coisa ali está preta. Mas “morar em Lisboa” não tem de querer dizer morar mesmo em Lisboa, como tantos lisboetas bem sabem.

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