1. O título desta crónica vem de um homem nascido há exactamente 200 anos. Um homem com uma cabeça tão forte por dentro como por fora. Tanto que se tornou “o americano mais fotografado do século XIX”. Não Abraham Lincoln, o presidente, não Walt Whitman, o poeta, mas este homem: Frederick Douglass.

Há uns anos, a propósito da sua herança afro-americana, Barack Obama falou do “olhar de leão” de Douglass. Foi esse leão que encontrei agora, ao pisar os Estados Unidos da América pela primeira vez desde que o sucessor de Obama é Donald Trump. Multiplicado por fotografias de várias décadas, o olhar de Frederick Douglass atravessa paredes no centro histórico de Boston, Massachusetts, um dos primeiros pontos das Américas onde a escravatura foi derrotada.

2. Frederick nasceu em 1818 numa plantação, como tantos outros filhos de escravizados. Nunca soube quem era o pai (talvez o próprio “dono”, dizia-se). Nunca viu a mãe à luz do dia, e foi afastado dela antes de saber andar. Aprendeu a ler e escrever sozinho vendo as crianças brancas, e às escondidas. Cedo estava a ler jornais, panfletos, discursos. Tentou fugir a vários “donos”, sem sucesso. Até que uma negra libertada, Anna, o ajudou. Casaram, adoptando o apelido Douglass, e Frederick começou a espantar com a força das suas palavras: a América e além mar. Tornou-se o mais célebre abolicionista negro dos EUA, um dos mais célebres oradores, e autores, de então. Negro emancipado, viveu para emancipar os outros, um verdadeiro leão afro-americano. Mas não apenas: pelo voto feminino, pelos direitos das mulheres e dos imigrantes, pela abolição da pena de morte, pela educação pública gratuita.

Um dos lugares onde a voz de Douglass se fez ouvir foi a pequena igreja baptista, considerada a mais antiga ainda em pé da comunidade negra nos EUA, onde fui dar numa manhã de neve deste Inverno de 2018. Eu e três estudantes bostonianas negras em busca da sua história.

3. Os primeiros escravizados chegaram à região de Boston em 1638, a bordo de um navio chamado “Desire”: Desejo. As cidades de Boston e Cambridge acabavam de ser fundadas por puritanos ingleses (protestantes que queriam purificar a sua igreja de vestígios “católicos”). Separava-as o rio Charles, hoje atravessado por várias pontes. Hoje, nas duas margens, este é um dos pedaços mais ricos dos EUA, e portanto do mundo. Do lado de Boston, os casarões de tijolo da Beacon Hill, bairro abastado, de intelectuais, de políticos, incluindo os Kennedy. Do lado de Cambridge, dois dos campus universitários mais célebres do mundo, primeiro o do M.I.T, depois o de Harvard. Tudo isto, na duração de um passeio. Um bom passeio a pé entre as duas margens, quando a temperatura cai para negativos e mais alguma neve cai sobre o rio, branco, duro.

4. Quando os puritanos se instalaram, naquelas primeiras décadas do século XVII, organizaram as terras em volta das casas como propriedade comum. E em volta uma paliçada, contra os lobos e os índios. Porque foi em cima de um trilho indígena que se instalaram. A palavra Massachusetts vem de um dos povos indígenas da região.

Quem hoje percorra a Massachusetts Avenue em direcção à Harvard Square vai achar os restos do Cambridge Common, essas terras comuns, e o primeiro cemitério, de 1635, com lápides dos “primeiros colonos, proprietários de terra, escravos, soldados, presidentes de Harvard e homens proeminentes de Cambridge”. Mais à frente, painéis com gravuras celebram a chegada de George Washington, para comandar o início da revolução americana, em 1775.

Isto, enquanto estudantes já nascidos com Internet passam de gorros e luvas e copo reciclável na mão, ou em cima de bicicletas a caminho de salas onde é possível um professor ou mesmo dois falarem para plateias de três sobre milhares de matérias à escolha; de bibliotecas abertas 24 horas por dia; de laboratórios, conferências, palestras, exposições, filmes e tudo o que a (provavelmente) mais rica universidade do mundo oferece a quem tem 70 mil dólares por ano para estudar, ou pediu um empréstimo, ou conseguiu uma bolsa.

5. A neve de Cambridge/Harvard está amontoada em pirâmides, cada casarão tem a sua grande pá à porta, passando a primeira porta todos os interiores estão superaquecidos, as rendas são na casa dos milhares de dólares e os salários para cima, é muito fácil andar de bicicleta porque é tudo plano, tudo largo e, da robótica ao sânscrito, da tortura de Estado ao cinema documental, se é possível estudar algo sobre algo, Harvard acredita que será aqui.

Nunca tinha estado numa biblioteca à noite, com gente estirada em sofás, sentada em alcovas, espalhada por mesas, átrios, cafés, muitas delas com estantes à vista, livros à mão, infindáveis corredores, salas e espaço, tanto espaço, tantos recantos, que (conta o amigo que me convidou, tal como lhe foi contado) é possível fazer sexo nas bibliotecas de Harvard.

Não vi, nem sinal. Só gente a ler, eventualmente a ver um jogo no computador, ou a tirar uma soneca. E o plural de bibliotecas é a valer: dezenas. A maior, a borgesiana Widener, tem três milhões e meio de livros em mais de cem línguas. Qualquer estudante creditado, ou um seu convidado, pode percorrer os caminhos labirínticos onde ainda estão os arquivos em papel, com as gavetinhas, e milhões de fichas dactilografadas, não trancadas. E do outro lado do corredor, mini-bibliotecas de temas muito específicos, sala a sala, abertas durante o dia. Sem guardas, sem aparentemente câmaras, sem ninguém à vista, pelo menos numa noite de semana, no meio do Inverno.

Isto, ao fim de um dia em que, por exemplo, Frederick Wiseman, 88 anos, lenda viva do cinema, comentou excertos de alguns dos seus documentários no vitoriano Sanders Theatre, o teatro-catedral de Harvard, vitrais incluídos. Mil lugares com entrada livre, que não esgotaram. Bastantes caras asiático-americanas na assistência, mas não mais de meia dúzia afro-americanas. Uma delas era Malia Obama, filha mais velha do ex-presidente, caloira aqui.

No fim houve uma série de perguntas para Wiseman. Alguém quis saber por que a questão racial está presente nos filmes dele. Wiseman respondeu que é porque está presente nos Estados Unidos da América.

6. Um dos colegas do meu amigo (numa das mais concorridas bolsas de Harvard) é descendente de indígenas americanos. Quando lhe coube fazer a sua apresentação perante o grupo de bolseiros — um ritual semanal em que cada um faz uma espécie de palestra biográfica — ele anunciou: a cabeça do meu avô está no Peabody Museum. Estava a ser literal.

O Peabody Museum é o museu arqueológico e etnológico de Harvard. O lugar onde podemos encontrar de facto cabeças indígenas, em forma de bustos ou fotografias; ou canoas, machadinhas, setas, tendas, reconstituições de aldeias, do que era a vida dos Navajos, dos Apaches, dos Massachusetts ou dos Lakota Sioux antes de serem exterminados ou relegados para reservas e museus.

A própria experiência de atravessar o museu é uma travessia pela lógica colonial, e a sua evolução, com exposições mais recentes funcionando enquanto contraponto. Como a mostra dos desenhos que os Lakota fizeram num caderno do século XIX, retratando do ponto de vista deles o combate com os brancos ocupadores de terras. Co-curadoria de um artista Lakota contemporâneo.

7. Do lado de lá do rio, os casarões de tijolo da Beacon Hill ainda têm os elegantes arranjos de Natal nos varandins das janelas, coroas e fitas nas portas. As folhas de Outono já se foram, com os seus ocres e vermelhos. Antes e além de John e outros Kennedy, em algum momento aqui moraram autores famosos da literatura americana, de Louisa May Alcott a Sylvia Plath, de Henry David Thoreau a Robert Frost, passando por Nathaniel Hawthorne. Todos nas imediações da tal igreja baptista afro-americana, fundada em 1806, que funcionou como um centro do abolicionismo.

Apesar de Massachusetts só a ter abolido oficialmente bem mais tarde, a escravatura fora de facto derrotada aqui em 1783, quando a constituição, recém-adoptada, ao declarar que todas as pessoas nascem iguais, abrira caminho a uma brecha em que os escravos podiam processar o estado e reclamar a sua liberdade. No fim do século XVIII, Massachusetts já não tinha escravos. E foi uma plataforma para a luta anti-esclavagista, incluindo Frederick Douglass. Então ele pisou as velhas tábuas desta igreja, as mesmas que agora percorro atrás das estudantes negras bostonianas, que tiram fotografias no púlpito.

Conta-se que pouco antes da morte de Douglass, um jovem negro lhe foi pedir um conselho sobre o que fazer. Douglass terá dito: “Agitar! Agitar! Agitar!” Falou para 2018.