O filme revela o talento de Kubrick para fazer humor, explorando o grotesco, em volta de um cenário de apocalipse. Radiografa as angústias de uma época marcada pela ameaça nuclear. Teve estreia em 1964 e merece ser sempre revisto. Agora, quando há um Kim Jong-un e um Donald Trump que têm o botão nuclear ao alcance da mão, a comédia Dr. Strangelove tem reforçada oportunidade.

Agora, em 2017, o cenário de devastação com um ataque nuclear parece algo de remoto, todos queremos acreditar que não seja possível. Mas a Europa de 1914 também julgava que a loucura fosse parada e não foi. Tal como em 1939 a maioria não via a guerra a chegar. Essas gerações já estão a chegar ao fim mas o mundo ficou com os relatos do horror dos ataques atómicos sobre Hiroshima e Nagasaki.

A ameaça de Trump de desencadear um castigo preventivo sobre a Coreia do Norte, no caso de Kim Jong-un continuar a insistir na exploração do arsenal atómico, causa desassossego. Pode tornar-se tarde para evitar uma temível reação desesperada de Kim Jong-un. Seul está apenas 65 quilómetros da fronteira com a Coreia do Norte, que anda a colocar a ameaça a 3350 km de distância, na estratégica ilha americana de Guam, espécie de gigantesco porta-aviões, com 160 mil habitantes e 28% do território dedicado ao destacamento de seis mil soldados dos EUA – era a base dos bombardeiros B-52 na guerra do Vietname.

É possível que a atual agressividade retórica de Trump seja apenas uma manobra de diversão: desviar a atenção da opinião pública do avanço da investigação sobre o chamado Russiagate, que entra cada vez mais dentro do círculo do presidente. A escalada do conflito verbal com o nuclear em fundo remeteu para segundo plano as buscas do FBI na casa de Paul Manafort, ex-diretor de campanha de Trump.

É evidente que, mesmo sendo Trump a personagem instável que já todos sabemos que é, não o podemos confundir com o lunático ditador Kim Jong-unMas não parece coisa boa que algum deles tenha o botão atómico assim tão ao dispor do humor do momento.

Inquieta a simplicidade e rapidez do letal sistema de disparo atómico. O protocolo militar americano determina que o presidente tem autoridade suprema sobre o arsenal nuclear. Bastam cinco minutos para desencadear o inferno nuclear. Tudo pode acontecer sem que o Congresso ou o Pentágono tenham tempo para tentar estancar o desastre. Aliás, segundo o regulamento, ninguém tem autoridade para contrariar o presidente. No caso atual de Trump, pode ser – é uma esperança - que dois experientes generais, Jim Mattis, chefe do Pentágono, e John Kelly, novo chefe de gabinete na Casa Branca, estejam por perto e consigam em tempo útil impor algum bom senso.

Do lado norte-coreano, toda a diabólica loucura está no catálogo deste ditador que é capaz de delirar que um dia poderia entrar em Nova Iorque a cavalo num míssil. Decerto nunca vai entrar, mas na Coreia do Norte esta dinastia Kim, já na terceira geração, instalou um reino de terror onde qualquer que ouse desafiar a autoridade absoluta do “camarada Kim” tem castigo mortal. É um país de máxima opressão e pobreza extrema. Intriga que um regime assim possa ter acesso ao poder atómico. A chave parece estar no colapso da União Soviética: uma antiga cooperação nuclear entre Moscovo e Pyongyang deu lugar à aceleração de programas atómicos quando alguns cientistas soviéticos optaram por se escapar para Coreia, no momento em que a revolução libertadora de Gorbachev, em 1991, impôs o estilhaçar da URSS.

Um presidente dos EUA, Truman, em agosto de 1945, deu a ordem para os ataques atómicos que devastaram Hiroshima e Nagasaki. Em outubro de 1962, Estados Unidos e União Soviética abeiraram-se do confronto atómico quando Kennedy impôs o bloqueio naval a Cuba para impedir que Fidel recebesse os mísseis da URSS. A crise foi resolvida pela diplomacia no telefone vermelho entre Washington e Moscovo. John Gaddis, respeitado historiador da Guerra Fria conta que Kennedy e Khrushchov compreenderam que o confronto nuclear não destruiria o inimigo, mas a humanidade. É uma lição que assenta na memória do inferno e que convirá não esquecer, também por quem sempre viveu em paz, apesar de tanta guerra pelo mundo.

Há um ditador louco em Pyongyang e em Washington está um presidente fora da norma e que gosta de usar o vocabulário de ameaça de John Wayne num filme de guerra. Ambos têm acesso ao botão que ativa o ataque nuclear. Vem mesmo a calhar revermos Peter Sellers no Dr. Strangelove de Kubrick.

Também a ter em conta:

Que lástima que o ódio racista, com cabecilhas neonazis e provocadores da Ku Klux Klan, volte a sentir-se confiante para desfilar em ruas dos EUA, como em Charlottesville. Ameaçam continuar. Saíram do limbo, aproveitando uma casa presidencial demasiado branca e indulgente. Charlottesville pode ser um ponto de viragem? Stephen Colbert é um comediante sempre acutilante. Embora ao retardador, Trump já se viu na necessidade de corrigir o discurso.

Bonnie and Clyde, 50 anos depois. Um filme que mudou o cinema dos estúdios de Hollywood.

O lince ibérico resiste: em Espanha e em Portugal.

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