Outra coisa que não esqueço: aprendi naquele livro o que quer dizer a palavra “charlatão”. O feiticeiro de Oz era um charlatão - cabeça gigante, barulhenta e falsa, pertencente a um homem pequenino atrás da cortina. E há pouco mais de um ano, quando aqui comecei a opinar semanalmente, mantinha uma esperança (nada secreta) de que os Estados Unidos vissem no candidato Trump pouco mais que o charlatão – a cabeça gigante, barulhenta e falsa, pertencente a um homem de nobreza pequenina. Os americanos nunca precisaram de espreitar atrás da cortina para saber quem lá estava. Não era suposto que na cabine de voto, atrás da cortina, lhe dessem poder presidencial.

365 dias volvidos desde as eleições e não há como sacudir esta sensação de irrealidade. É difícil fazer um rescaldo credível quando ainda estou incrédulo. As teorias do multiverso só podem andar certas, porque tudo indica que nós estamos a viver numa realidade paralela, aquela em que os factos absurdos e improváveis acontecem. Habitamos o universo onde, para efeitos de ficção, as coisas são lamentavelmente mais interessantes. Capa com ilustração canhestra, charlatães de pacotilha – é assim que vai o mundo.

Perdoem todos as retrospectivas pessoais que uso para perceber este último ano de Trump. Não consigo traçar um rescaldo a partir só do que penso no Presente, tenho de confrontar-me com todas as opiniões que vim a ter nos últimos 12 meses. Faço-o até porque, aqui no Sapo 24, o meu historial de crónicas coincide com o fim da campanha de Trump, com a sua eleição e com os meses iniciais de mandato. Neste momento prevalece uma penosa incerteza em relação ao futuro e, por isso, tive de ir tentar perceber em que pé é que estão agora todas as incertezas que registei ao longo do último ano.

As minhas previsões parecem ter falhado redondamente: logo a começar, escrevi que Trump não ia vencer as eleições. Mas escrevi-o no sentido “não vai ganhar porque não pode” – era mais uma declaração de intenções que uma previsão, pois o optimismo desesperado leva-nos a estes exercícios de wishful thinking. Noutra previsão (em que contrariei grande parte dos alarmismos à minha volta) disse que com Trump na presidência o mundo não ia acabar. Nesta, lamentavelmente, acertei.

A sobrevivência do mundo - que previ e se confirma - não é a melhor das notícias. No fundo, assinala que estamos a cozinhar em lume brando. Trump ainda não fez o suficiente para que o mundo se una em torno da necessidade urgente de um reset. Ainda não andamos a limpar escombros globais enquanto juramos que não se vai repetir o erro. Verdade seja dita, Trump nem sequer é o pior vilão do Universo neste momento; nem sei sequer se é vilão, apesar da obviedade da sua charlatanice cabeçuda. Há, no mundo, líderes bem mais ardilosos, bem mais pérfidos e bem menos democratas que Donald Trump, alguns dos quais a receber louvores de bancadas ocidentais, onde a portuguesa não é excepção. O grande problema de Donald nem reside tanto nessa vilania de filme do 007. O problema são os colossais poderes que tem à frente e as colossais bizarria e incompetência que tem dentro de si.

Não me entendam mal. Trump é, sem sombra de dúvida, um péssimo presidente. Dos piores que assumiram o cargo e o mais inábil que recordo. É mesquinho, inconveniente, narcisista, chauvinista e xenófobo. É manipulador e manipulável, revanchista, altivo e infantil. É ridículo na aparência e nos 140 caracteres. Mas, ainda assim, não conseguiu fazer o suficiente para arruinar a sua presidência. Ainda não conseguiu abanar com sucesso os pilares que sustentam o país, nem os bons nem os maus. As consequências da sua actividade política ainda não devastaram os E.U.A., nem fizeram mossa inesperada ao resto do mundo (que nunca precisou de um demónio destes para demonizar a América).

Numa lógica retorcida, repito a ideia que um dos grandes defeitos de Trump foi a incompetência na tarefa de destruir o mundo. Foi incompetente a dar azo total à sua inegável incompetência. Isto levanta logo um par de problemas: primeiro, porque vai retardando uma destituição que, há um ano, me parecia ser questão de meses. Segundo, porque sempre que o sistema atou as mãos de Trump, ou sempre que Trump se amarrou ao sistema, provou-se que a revolução prometida na campanha ficou aquém; o alvoroço quedou-se no estilo, não na consequência. Isto parece um sinal menos mau para quem não votou em Trump. Mas, e para os restantes? Enquanto candidato, Donald apresentou-se como um desalinhado, unindo assim toda aquela massa descontente que acabaria por elegê-lo. Agora que este charlatão (de cabeça falsa e gigante) abriu a cortina e mostrou que quem controla ainda é o sistema, para onde se voltarão os descontentes?

Este feiticeiro, que prometia extremar tudo, desilude o seu eleitorado. Não é de temer que esse eleitorado procure agora caminhos ainda mais extremados? Esqueçamos as argoladas monumentais: a figura política de Trump pode ficar marcada sobretudo pelo espaço que abriu a ideologias perigosas – antes tidas como minoritárias, pelo menos até às eleições de há um ano. Boa parte dos votantes em Trump foram identificados como gente descontente e com leve aroma a rancor; agora que se apercebem que a presidência do trumpiceiro de Oz ainda não trouxe revolução concreta, não é de recear que tais votantes migrem para ideologias abomináveis, com forte fedor a ódio? Tem vindo a acontecer na civilizadíssima Europa; porque não na apalhaçada América?

Enquanto isso, o Partido Republicano enfraquece-se, desinteressa-se e esvazia-se de referências políticas. O Partido Democrata resvala, entre o trauma de uma eleição perdida para Trump e a cartilha da political correctness que só vai alimentando o monstro da realpolitik. Os americanos continuam a defender-se com a mesma 2nd amendment que alveja americanos. A Coreia do Norte reforça o arsenal e reacende a desgarrada de boquinhas. Na China, Xi Jinping reforça o estatuto imperial, um plenipotenciarismo endeusado que facilmente se encavalita em cima do falhanço moral de Trump. Na Rússia, o titereiro Putin esfrega as mãos – de contentamento, não pelo frio moscovita. Tempestades e verões extemporâneos fazem esvoaçar os capachos loiros dos negacionistas do clima. Com ou sem muros, desconfianças cimentam-se. Mas, nesta estrada de tijolos amarelos, a jornada ainda está para durar.