Quem acompanha a comunicação social norte-americana, escrita e televisionada, quase que sente dó pelo tom dos textos e pelo cariz dos comentadores. Os jornalistas, os americanos bem informados, a inteligência, a tal “elite liberal” de que Trump se queixa, está constrangida e descoroçoada com um presidente que se comporta mais como um coronel Tapioca das repúblicas das bananas que antigamente eles colonizavam e desprezavam. Como escreve David Remick no “The New Yorker”: “Donald Trump age como um déspota. (...) Coisas assim não é suposto acontecerem numa democracia liberal, especialmente nos Estados Unidos, que se orgulha das suas salvaguardas contra o exercício arbitrário do poder.

A “coisa assim” de que Remick fala foi o despedimento sumário, ontem, do Director do FBI, James Comey – mais um episódio, desta vez gravíssimo, da série de demissões atamancadas que Trump tem feito, desde o General Flynn, Conselheiro de Segurança Nacional, até à Ministra da Justiça (Attorney General), Sally Yates.

Citando ainda Remick: “O FBI é para ser um órgão independente, acima e fora da política partidária e das questões pessoais. É por isso que os seus directores são nomeados por períodos de dez anos. Espera-se que o Presidente respeite esta independência, especialmente quando se trata de assuntos em que tenha, ou possa ter, interesses pessoais.”

Donald Trump acabou de fazer 100 dias no posto, portanto tudo isto tem acontecido a um ritmo difícil de acompanhar. Os seus apoiantes, na maioria gente simples que acreditou em promessas de esplendor nacional e oportunidades de trabalho, não percebem nem querem perceber os meandros de Washington. Reportagens recentes nas berças dos Estados mais pró-Trump mostram cidadãos rosados de camisa de xadrez a dizer que o homem está a ir muito bem, não o deixam é trabalhar, e mulheres desdentadas a jurar amor pelo macho alfa em que votaram.

Quanto às elites republicanas, senadores, parlamentares e governadores, fazem de conta que não percebem, pois sabem que esta é uma oportunidade única de legislar uma agenda ultra-conservadora – anti mudanças climáticas, anti segurança social e pró grandes interesses e sectores devastadores para o ambiente. Estão a acabar rapidamente com o financiamento de projectos artísticos e científicos, planeamento familiar, ajudas aos mais pobres e ensino público gratuito. Não gostam do Donald, que nem sequer era republicano, mas desde que lhes dê a possibilidade de deitarem abaixo décadas de supervisão estatal, preferem não investigar muito as incongruências do Presidente e – aqui está o mais grave – o presumível envolvimento de Putin na eleição de Trump.

E esse envolvimento, cada vez mais óbvio, é que está na origem das confusões e despedimentos sumários.

Primeiro foi o caso Flynn. O General recebeu dinheiro dos russos e negociou secretamente com eles na altura em que Barack Obama lhes impôs sanções precisamente por se envolverem nas eleições presidenciais. Foram eles que revelaram e-mails do Comité Eleitoral Democrático prejudiciais a Hillary Clinton, numa tentativa de a queimarem perante a opinião pública. Soube-se agora que o FBI e a Ministra da Justiça, mesmo o próprio Obama, avisaram Trump que Flynn não era de confiança. Pior, os russos tinham material para o chantagear, o que o tornava vulnerável demais para ser Conselheiro de Segurança Nacional. Mesmo assim, Trump demorou 18 dias a demiti-lo, e fê-lo somente quando as provas já eram públicas.

Seguiu-se o caso da Ministra da Justiça. Sally Yates foi demitida porque se recusou a cumprir a ordem de Trump para impedir a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Yates tinha o direito de não executar uma ordem que achava inconstitucional, assim como Trump tinha o direito de a demitir por desobediência; mas agora soube-se, pelo depoimento de Yates ao Comité Parlamentar que está a analisar as ligações entre russos e assessores da Casa Branca, que ela tinha-o avisado contra Flynn, o que coloca Trump na desconfortável situação de não ter demitido o general prontamente.

O caso do Director do FBI é mais subtil e, ao mesmo tempo, mais óbvio e mais patético. Quando Comey veio a público dizer que estava a investigar os emails de Clinton, prejudicando a sua candidatura – e quebrando uma tradição do FBI não fazer declarações durante o período eleitoral – Trump elogiou-o publicamente como um “homem de coragem”.

Mas Comey também estava a investigar os tais envolvimentos de assessores de Trump com os russos. Até agora não se sabe nem quantos são nem até onde vão os compromissos, mas o embaixador russo, Sergey Kislyak, aparece repetidamente em telefonemas e contactos com muitos deles, desde Flynn a Jeff Sessions, o Ministro da Justiça de Trump, que pediu escusa do processo, o que já é em si suspeito. E ontem o mesmo Jeff Sessions aconselhou Trump a demitir Comey, o que é mais suspeito ainda. Acresce que a desculpa dada para o despedimento – a atitude de Comey em relação a Hillary – é patética, dado o tempo que passou e os elogios de Trump na altura.

A impressão que tudo isto dá – e em política impressões são tiros no couraçado – é que Trump demitiu Comey porque a investigação do FBI se estava a aproximar perigosamente dele próprio.

O único precedente duma demissão destas foi em 1973, quando Richard Nixon despediu Archibald Cox, o Procurador Especial que investigava Watergate. Mas em 1973 o então Ministro da Justiça, Elliot Richardson, e o seu adjunto, William Ruckelshaus, recusaram-se a demitir Cox. Foi preciso Nixon recorrer ao Procurador-Geral, Robert Bork, para efectuar o despedimento.

Desta vez foram os próprios Ministro da Justiça, Jeff Sessions, e o seu adjunto, Rod Rosenstein, que aconselharam Trump a demitir Comley. A diferença para 1973 é tristemente notável, como todos os comentadores não deixam de salientar.

O caso não vai ficar por aqui, evidentemente. O que democratas, republicanos e a comunicação social estão a pedir – a exigir mesmo – é que seja nomeado um Procurador Especial independente para investigar as relações entre os russos e a tropa de Trump. Por enquanto não se fala em impedimento do Presidente, mas é evidente que essa possibilidade está cada vez mais próxima. Entretanto, os americanos informados assistem incrédulos a uma situação que mostra como as garantias constitucionais de imparcialidade e justiça estão em perigo. Para não falar no envolvimento de um país estrangeiro, tradicionalmente inimigo, na escolha do Presidente.

A esquerda portuguesa e europeia está, é claro, rejubilante. Finalmente os americanos têm Presidente que incorpora todo o mal que eles sempre atribuíram aos Estados Unidos. A ausência de liberdades internas na Confederação Russa ou a sua expansão sem olhar a meios ou princípios, parece que não os incomoda tanto. Ainda não perceberam que a Rússia já não se chama União Soviética e Putin é um ditador de direita. Também se recusam a admitir que os Estados Unidos não são monolíticos e muitos americanos estão dispostos a defender com unhas e dentes os valores expressos na Constituição. Convém lembrar que essa Constituição é a mais antiga do mundo, a única que se mantém desde a sua promulgação (quantas constituições já teve, por exemplo, a ferozmente democrática e republicana França?) e tem garantido uma notável liberdade de expressão e uma luta constante pelos direitos individuais. Tal como os ingleses e outros impérios antigos e recentes, os americanos podem não se incomodar com as liberdades doutros países, mas nas deles ninguém mexe.

Sugestões:

Não é só em casa que Trump tem problemas; na Coreia do Sul acaba de ser eleito um presidente que tem novas ideias para a situação na península, especificamente uma aproximação à Coreia do Norte. Está tudo no Daily Beast.

E começa dia 13 a Bienal de Veneza, um acontecimento cultural que não se pode perder ou que, tendo de perder por razões financeiras e que tais, se pode apreciar nas publicações especializadas, como a simpática The Art Newspaper. Portugal desta vez está representado por José Pedro Croft, curadoria de João Pinharanda.

Tem as suas acções da Apple tão bem guardadas como o seu iPhone? Olhe que a empresa, a maior do planeta, acaba de atingir o simpático valor de 800 mil milhões de dólares! Está tudo no The Guardian.