“A Estrada Subterrânea” não partiu da ideia de escrever sobre escravatura, mas de uma visão de infância daquilo que foi a “underground railroad” americana: uma rede de colaboradores abolicionistas que ajudaram escravos em fuga, abrigando-os em casas ou sótãos, dando-lhes boleias ou ajudando-os a atravessar rios, e não um caminho-de-ferro subterrâneo, no sentido literal.

O escritor norte-americano usou essa “metáfora” e decidiu “explorar essa ideia infantil”, de uma ferrovia subterrânea clandestina por onde os escravos podiam fugir, “e ver que história conseguiria tirar daí”, contou em entrevista à agência Lusa.

Essa história foi a de Cora - uma escrava de 15 anos numa plantação de algodão na Geórgia, abandonada pela mãe na infância, que sofre os horrores da sua dupla condição de escrava e mulher - e com ela ganhou o Pulitzer para ficção, o National Book Award e o prémio Arthur C. Clarke para ficção científica, entre outros.

Cora aceita o desafio de fugir com outro escravo, Caesar, e, a partir desse momento, a sua vida é uma “odisseia”, percorrendo diferentes Estados e encontrando em cada paragem um mundo diferente e formas diferentes de encarar os negros e a escravatura, numa narrativa que o autor admite ter ido beber às viagens de Gulliver.

Partindo da profundamente esclavagista Geórgia, depois de ver um escravo ser torturado e queimado vivo, Cora dirigiu-se para a aparentemente tolerante Carolina do Sul, onde pôde saborear escassos momentos de liberdade, até perceber que as mulheres negras eram esterilizadas à força e usadas em experiências, que visavam uma limpeza étnica.

Colson Whitehead socorreu-se de “arquivos de escravos, pessoas que fugiram e tornaram-se forças da abolição, que contaram as suas histórias de ajuda a pessoas a fugirem para norte”, bem como de entrevistas feitas por escritores contratados pelo Federal Writers’ Project, nos anos 1930, durante a Grande Depressão, a antigos escravos, para poderem recolher “as suas histórias antes de morrerem”.

Toda esta documentação forneceu “vários detalhes” para o livro, a que se juntaram histórias como “a esterilização forçada e a eugenia”, que foram obtidas a partir de leituras que o autor foi fazendo ao longo de décadas.

Aliás, este foi um livro muito demorado, já que a ideia nasceu no ano 2000, mas Colson Whitehead não a conseguiu “pôr para fora”, porque a estrutura lhe parecia “muito complicada”, e sentia-se ainda demasiado novo para conseguir escrever sobre aquele assunto.

“Então esperei e, há cerca de três anos, depois de tanto tempo a evitá-la, escrevi-a”, mas não sem antes ter refletido muito sobre quem seria a personagem principal.

Colson Whitehead já explorara anteriormente diferentes tipos de personagens, mas nunca “uma dinâmica de mãe e filha”, por isso a escolha de uma mulher para protagonista resultou, em parte, de querer “contar uma história diferente” e tentar não repetir o seu próprio “método artístico”.

Por outro lado, o “famoso relato de uma escrava, de Harriet Jacobs” (em Portugal publicado pela Antígona como “Incidentes na vida de uma escrava”), que fugiu do seu “dono” e passou sete anos escondida antes de conseguir chegar ao norte, que “fala sobre o dilema das mulheres escravas, a sua puberdade, a possibilidade de terem bebés - e terem bebés significava mais escravos e mais propriedade para os seus donos -, pareceu-me uma coisa interessante para explorar”, acrescentou.

“A estrada subterrânea”, em Portugal editado pela Alfaguara, resulta num livro que é uma mescla de realismo e efabulação, que combina a violência da escravatura com o medo e o drama da fuga em direção a um lugar e a uma liberdade que na verdade não existem – levando os protagonistas a perceber que a cor da pele os condenava à nascença a serem escravos para sempre -, e faz a ponte com a América contemporânea.

A ideia de que “um escravo será sempre um escravo”, latente durante toda a luta pela fuga e sobrevivência de Cora, persiste nos dias de hoje, não sob a imagem da escravatura, mas do racismo, porque um negro será sempre um negro e “nunca foi seguro ser um jovem negro na América”, nem na “racista de 1850”, nem na “América que continua a ser muito racista e elegeu um presidente racista”.

“Progredimos de uma forma muito lenta, não é tão mau como era na altura, mas o racismo continua a ter uma força poderosa na América e na maioria do resto do mundo”, considerou o escritor, comparando os grupos organizados de homens brancos que controlavam, perseguiam e castigavam os escravos no sul dos Estados Unidos, com as forças policiais que param, identificam, revistam e matam, se fugirem, as pessoas negras, e com os grupos de supremacia branca: “o paralelismo entre as forças de então e as de hoje é óbvio”.

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