“Diz-se que o túmulo de Escobar é constantemente visitado pelos seus admiradores, alguns afirmam que lhes concede milagres”, conta Maria Luz Giraldo, professora universitária e Mestre em Literatura pela Universidade Nacional da Colômbia.

Sem floreados: Escobar era um criminoso. Um narcotraficante que fundou um cartel e declarou guerra ao Estado colombiano por se opor à extradição para os EUA, que planeou atentados contra figuras políticas e que tinha uma rede de sicários (assassinos) que não questionava as suas ordens e semeava o pânico e a morte. Mas a cultura popular é graciosa para com Escobar, e destaca “o seu poder económico, a imagem de macho sedutor, e do Robin dos Bosques, defensor dos mais pobres”, conta Giraldo. E é esta a origem do mito que imortalizou Escobar em livros, filmes e séries, como “Narcos”, cuja segunda temporada estreia esta sexta-feira.

Assim nasceu a “pornomiséria”

“Em meados da década de 80, o narcotráfico era uma realidade incontornável”, conta Maria Luz Giraldo. E acrescenta: “o tráfico de droga definiu uma das tendências da narrativa colombiana dos anos 90, a chamada narcoliteratura, que tem como derivada a sicaresca”, cuja figura central é o sicário. “Narcos” nasce daqui. Giraldo não tem dúvidas da influência deste subgénero literário, pejorativamente denominado nos ambientes académicos como “pornomiséria”, na série.

Nestas manifestações literárias, os autores mostram como “o tráfico de droga permeou a sociedade”, tendo mesmo criado “uma nova moral e uma nova estética”. Esta “nova moral” prende-se sobretudo com a “inversão de valores”. O dinheiro em primeiro lugar. A fortuna que dá estatuto e que se deseja conquistar a qualquer custo, e o poder que contamina tudo e todos. “Matar para comprar o que antes não se tinha, e ver um herói naquele que alcança os seus intentos”, resume a especialista.

Neste género, distinguem-se obras como “O Divino” (1986), de Gustavo Álvarez Gardeazábal, que aborda o crescimento vertiginoso e inexplicável de fortunas; os contos “Em Terra de pagãos” (1991), do escritor Darío Gómez; ou ainda “O Ruído das coisas a cair” (2011), de Juan Gabriel Vásquez, que trata a contaminação dos altos estratos sociais e dos ambientes universitários.

E, para provar que a ficção não está distante da realidade, Giraldo recorda que “Escobar, por exemplo, foi representante da Câmara”. O fundador do Cartel de Madellín era um homem com aspirações políticas, e “Narcos” retrata esta sua faceta de homem de Estado, que se considera a resposta para os problemas da Nação, o paladino dos mais pobres.

A nova estética, por sua vez, está relacionada com a “exibição de poder pela extravagância”, explica. Das “vivendas imponentes”, às “loiças em ouro”, passando pelos “zoológicos”, e “sem esquecer as mulheres, muitas vezes do mundo do espectáculo, rainhas da beleza, modelos, apresentadoras de televisão, figuras de silicone”, lista a professora. Uma época em que uma obra, desconhecida da maioria dos portugueses - “Sem tetas não há paraíso” (2008), de Gustavo Bolívar – ilustra na perfeição.

“Narcos” é fiel a este imaginário: desde a mansão de Escobar, ao enredo em torno da mítica espada de Simón Bolívar, ao romance com a exuberante Valeria Velez ou à vida sem restrições n’A Catedral, a prisão de luxo do fundador do Cartel de Medellín.

Para a especialista, foi Héctor Abad Facciolince quem dominou a literatura sicaresca, obras que giram em torno da figura do sicário, aquele que se move num ambiente marginal, o rebelde que decide viver consoante as suas próprias regras e que, passando de patrão em patrão, vive as mais incríveis aventuras. Entre as obras mais representativas podem citar-se: “Morrer com Papá” de Óscar Collazos (1997), “A Virgem dos Sicários” (2000) de Fernando Vallejo; “O sangue dos outros” (2000) de Arturo Alape e “Rosario Tijeras”, de Jorge Franco.

E se a narcoliteratura foi para alguns autores a forma encontrada para contrariar a “sensação de impotência o ceticismo face à realidade” de deterioração social, política e moral; para outros foi a oportunidade de tratar um imaginário popular entre os leitores.

Quando perguntamos a Maria Luz Giraldo se vê “Narcos” reavivar a paixão pela narcoliteratura, a académica mostra-se cética:  “Os novos autores vão por outro caminho: interessam-lhes outros temas, outros empreendimentos. Evidencia-se um verdadeiro cansaço deste tipo de literatura e de temas, considerando-se inclusivamente uma tendência já esgotada”.



Séries, os novos livros?

“Enquanto que a ópera no final do séc. XVII era o conteúdo de entretenimento por excelência, como o romance foi na viragem no séc. XVIII para o XIX, e a longa metragem para a geração de 70 no século XX, talvez hoje as séries sejam o formato de referência de entretenimento, sem dúvida nenhuma”, diz Manuel José Damásio, professor e diretor do Departamento de Cinema da Universidade Lusófona.

E nesta mudança de paradigma, o acesso ao conteúdo é determinante, porque “tem um impacto brutal no potencial de circulação” do que é produzido, explica, em referência ao facto de as plataformas de streaming, contrariamente aos operadores tradicionais, disponibilizarem desde o primeiro momento toda a temporada.

“O poder tradicional da grelha de televisão desapareceu por completo”, diz Damásio, acrescentando que a “figura do canal é substituída por um operador de que, na prática, dá ao utilizador o acesso a um buquê de conteúdos”. E se “cada vez se vê mais conteúdo televisivo, vê-se cada vez menos emissão linear de televisão”, concluiu.

“Do ponto de vista do produtor, acho que os tempos serão melhores”, diz o professor, para quem o aumento do consumo e a entrada de novas plataformas no mercado pode representar uma oportunidade. Já para as televisões tradicionais “haverá certamente grandes desafios”. “Menos audiência significa menos publicidade, e menos publicidade significa menos receita”, resume.

E Portugal? “Está a fazer-se muito mais audiovisual e com muito melhor qualidade”, considera este especialista, destacando o facto de o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA)  ter passado a financiar o desenvolvimento de produtos que, de alguma forma, “se adaptem a novas plataformas de distribuição”. No entanto, “ainda não é de todo claro se Portugal está em condições de apanhar este barco”. “Espero que sim”, confessa.

“A emergência destas plataformas cria espaço para que um conteúdo de nicho - que não sustentável em Portugal - tenha uma escala global, em que é sustentável. Um nicho global é muito grande, são muitos milhões de pessoas”, ressalva.

Para Damásio, o que é inovador em “Narcos” é a capacidade de conseguir escalar um conteúdo de nicho (a série documental), tornando-o apelativo a um mercado de massas, mantendo, porém, o factor de diferenciação que é a sua origem mais alternativa.

“Narcos” é, para Damásio, um “híbrido”, onde a “a inovação audiovisual colocada ao serviço de uma coisa que, se quisermos, do ponto de vista de conteúdo dramático, não é assim tão inovadora”, mas que o diferencia do que já existe no mercado.

A segunda temporada desta série documental com uma “pitada” de Hollywood estreia esta sexta-feira, no Netflix, e tem fim anunciado: Escobar morre depois de fugir da cadeia, tal como aconteceu na vida real. O desafio? Dez episódios para descobrir quem matou Pablo Escobar.

Veja aqui a entrevista com Wagner Moura, protagonista de "Narcos", e Pedro Pascal, que faz o papel de Javier Peña, ex-agente da Drug Enforcement Administration.

Veja a segunda temporada de "Narcos" na Netflix.

[Conteúdo patrocinado pela Netflix]