– Antes de subires, vai à casa de banho.

– Não tenho vontade.

– Vai na mesma.

– Mas não tenho vontade.

– Força.

O debate sobre as propriedades da expulsão de líquidos ocorre nos bastidores do cinema São Jorge, em Lisboa. Fazem dele parte artista e agente. É forçar para descarregar. Descarregar os nervos, entenda-se.

É a ansiedade. A ansiedade antes de subir a um palco, antes de tentar fazer rir perto de 830 pessoas na noite das bruxas, numa noite de outubro, numa véspera de feriado na cosmopolita Lisboa. Há de estar tudo contra. Há de estar tudo a favor.

Guilherme Duarte, o homem por trás do blogue "Por Falar Noutra Coisa", que conta, só no Facebook, com perto de 300 mil seguidores. Para além disso, é cronista no SAPO24.

Acompanhámo-lo na estreia a solo, no início de uma volta pelo país com um espetáculo de “stand-up e outras cenas”.

“Vão encontrar um Guilherme mais nervoso - espero que tenham essa condescendência”

Medo. “Borradinho”, confessa ele. Guilherme Duarte prepara-se para a estreia a solo. E começa logo pela sala grande: o cinema São Jorge, no coração de Lisboa.

17:36. É na varanda que o encontramos. O sol vai-se pondo, o trânsito berra no meio da Avenida da Liberdade e o cheiro a combustível enegrece o olfato. Guilherme está sozinho, sentado numa das mesas. Inclinado sobre o telemóvel. Nervoso? “Borradinho”.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

Porquê fazer uma coisa destas? "Sei lá, porque sou masoquista, acho que é um bocadinho isso. Estava na altura de experimentar."

"Sou mais da escrita, mais do digital. Estava na altura de dar o passo para o mundo real, perceber se havia público, se o público estava disposto a sair de casa e pagar dinheiro, ver ao vivo em vez de pôr like".

"Para me testar. Perceber se isto pode ser um caminho, se é uma coisa que me dá gozo e quero continuar a fazer e se as pessoas gostam", explica, minutos antes de entrar sala Manoel de Oliveira dentro, para o ensaio. O derradeiro. O final. O último antes do fim.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

20:04. É entrar com tudo. É entrar e dar tudo. Nas 830 cadeiras da sala, só duas estavam ocupadas: pelo agente e pelo “gajo que mais percebe de stand-up em Portugal”. Assistiam atentos. Davam dicas. Insultavam. Riam. Provocavam e respondiam às provocações.

Mas o Guilherme dava tudo. Amor à camisola, talvez. Peito cheio; peito forte. As pernas podiam querer desabar, mas não haviam de cair.

Depois do ensaio, a corrida vai mais depressa. Os nervos sobem à garganta. Sobem a todo o lado na verdade. Agora não dá para parar. Há bilhetes a ser vendidos no mercado negro. “São pessoas que se lembraram de que tinham outras coisas para fazer”, atira Guilherme.

21:29. Não há tempo. Ou em havendo vai-se esgotando. Um cigarro. Outro. Um detalhe. Outro. Joga o Sporting. "Deixa o telemóvel". "Estou a ver se há alguém que não consegue entrar". "Se não conseguirem ligam para mim". Um nervo vem. Um nervo fica. Joga o Sporting.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

21:33. No camarim cheira a clube de strip barato, diz, citando um amigo que lhe contou ser este o cheiro dos clubes de strip. É nele - no camarim - que se veste. Um fato que só vestiu uma vez antes  (para a fotografia do cartaz). Uma camisa que sujou de sangue por lhe estarem os nervos a roer as peles nas pontas dos dedos.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

21:38. Nuno Pires, o agente, o consultor de moda, o amigo, o gajo que arranja a bainha das calças ao artista prestes a entrar em palco.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

21:45. A última sensação do palco, imediatamente antes de as portas se abrirem e o público escorrer pelas cadeiras do São Jorge. Dá para arrumar a garrafa de água, ajeitar as folhas e pouco mais. Não há tempo.

Há quem espere lá fora. Novos, velhos. Um grupo, três mulheres e um rapaz, vai comendo bolo de chocolate. Conheceram Guilherme pelo Facebook. Esperam agora pelo espetáculo. Querem ouvi-lo contar a história dos miúdos do colégio que foram para o liceu público. “E também aquela outra.” - Qual? - “Aquela!”. E riem.

21:48. Lá atrás, no camarim, Guilherme não ri tanto. “Vai lavar a cara”; diz-lhe o agente. “Esfrega, mas não muito para não se notar”, acrescenta.

Está calor. “Também posso tirar o casaco?”. “Eu entrava com o casaco e depois, se quiseres podes tirar”. "Tu que és da imagem, o que é que achas?". O homem que segura a câmara (e por sinal assina o texto), que tinha ordens de ser fantasmas, faz que sim com a cabeça.

O Guilherme decide encher 830 lugares e agora está nervoso. Não tem um bocadinho de culpa?

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

22:01. O Porto. É o elixir da coragem. O espetáculo estava marcado para as 22:00. Um ligeiro atraso para deixar que o público se sente, se acomode. Se ponha confortável nas cadeiras vermelhas da sala.

22:22. Vai lançado o espetáculo. Espetáculo que envolve uma transformação. Este Guilherme não é o que se senta a falar de outras coisas. Este tem outra atenção. "Escrever na net pode ser só uma ligeira piada, uma ironia e ter uma punch line no final do parágrafo e funciona bem. Aqui convém ter risos de 15 em 15 ou 20 em 20 segundos, ter uma punch line".

Aqui há que "pintar o texto, tirar a palha, pintá-lo com mais piada", explica.

Feito. Venham os outros

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

23:47. O abraço imediatamente após o espetáculo. Para trás, os aplausos. Uma hora e meia de espetáculo. Uma hora e meia “do espetáculo de stand-up mais complexo que já se fez em Portugal”, afiança Nuno Pires.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

23:48. Guilherme Duarte descontrai, nos bastidores, depois do espetáculo. Pela janela entra Lisboa.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

23:53. Nuno Pires (esq.) e Guilherme Duarte (dir.) falam dos camarins para quem está nas traseiras do São Jorge, em Lisboa.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

23:56. Guilherme Duarte é levado de volta para o foyer do São Jorge, para a sessão de autógrafos.

00:08. Beijos, fotografias e autógrafos. Aos fãs. À família. Aos amigos.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

00:54. Adereços de Doutor G, personagem que dá conselhos sexuais na internet e consultas completas no São Jorge. E nos auditórios por onde passará até ao final de novembro.

créditos: Pedro Soares Botelho | MadreMedia

00:56. “Posso entrar?” - “Não, o Guilherme está nu!”. - “Não estou nada!”, grita, mas ela já não ouve, por entre as desculpas que pede. “Por que raios estaria eu nu com dois homens num camarim?” - “A descontrair”, indaga Nuno Pires. Talvez. Não estava nu. Somente despido, descontraído, com o fato arrumado na mala e pronto a partir. Dia 9 é no Porto, “que também já está esgotado”.