Estávamos em 1976. Os Estados Unidos ainda lambiam as feridas abertas por Watergate, ao passo que o mundo dançava ao som dos ABBA. Israel voava até Entebbe, no Uganda, para combater o terrorismo, no mesmo ano em que todo um movimento brotava do chão inglês para radicalizar o rock n' roll e a sociedade em geral: o punk. Por cá, despedíamo-nos definitivamente do PREC com a aprovação da Constituição Portuguesa, enquanto um grupo de jovens liderados por Carlos Alberto Vidal invadia o estúdio Polisom, em Campolide, e abria as portas do Shangri-lá, ou "Changri-Lá", a todos os Homens e Mulheres que lá quisessem entrar, desde que, evidentemente, viessem por bem. Em tempo de incertezas, "Changri-Lá" foi o último grito proveniente dos anos 60 da paz e do amor, e que quarenta anos depois, em novo tempo de incertezas, volta a ressoar nos corpos de todos quantos estiverem curiosos o suficiente para o visitar.«Os anos 60 foram maravilhosos, e eu não fugi à sua influência», explica Carlos, sorrindo.

Os anos 60 foram maravilhosos, e eu não fugi à sua influência

Mas pausemos, recuemos um pouco atrás. Carlos Alberto Vidal? Sim, esse mesmo. Talvez alguns o conheçam (muito) melhor com este nome: Avô Cantigas. A personagem que desde os anos 80 se instalou no imaginário e música portugueses, levando sorrisos a todas as crianças e, até, aos que nunca o deixaram de o ser, num notável atravessar de gerações – lembremo-nos de que o seu maior sucesso, "Fantasminha Brincalhão", ocorreu já no século XXI. Este ano, o Avô celebra 35 anos de carreira e, meio em off, prometeu novidades em breve. Antes disso, o homem que lhe dá corpo e voz regressou, por alguns momentos, ao seu passado no rock progressivo, embalado pela reedição que a portuense Babilónia fez deste "Changri-Lá", a partir de um disco original cedido pelo autor.

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Reedição essa que foi concluída em 2016, após a Babilónia ter contactado o músico, solicitando a sua autorização e tratando de todas as burocracias necessárias. E que não será para todos, mesmo todos, estando limitada a 300 cópias físicas. Tal não será de estranhar. "Changri-Lá" ocupa, à semelhança de tantos outros discos do período progressivo, um lugar de nicho – ou, para escapar ao aparente menosprezo que esta palavra acarreta, será melhor dizer “de culto”, algo do qual o próprio Carlos Alberto Vidal já tinha noção. E, saliente-se de igual modo, a Babilónia é uma editora pequena, sem a capacidade de ombrear com as gigantes. Esta redescoberta do "Changri-Lá" parte, por isso, «da carolice de gente muito jovem, que se interessa por um passado que já não é assim tão recente, mas a qual saúdo porque é uma maneira de trazer, novamente, para a ribalta algo que aconteceu – e que, na altura, até funcionou relativamente bem», explica o autor.

Da pop até ao Shangri-lá

"Changri-Lá" é o primeiro LP “à séria” de Carlos Alberto Vidal, após ter lançado alguns singles sob a influência da música popular e de nomes como Zeca Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco, «a sua escola», tendo trabalhado com José Calvário e com Shegundo Galarza. No fundo, o álbum soa ao cruzamento entre essa música e a eletricidade importada ao rock progressivo, sendo sempre cantado em português e só se desviando desse trilho, ainda que ligeiramente, durante o maravilhoso funk branco de “O Meu Nome Somos Nós (Maharaj-Ji)”. «Quando tive oportunidade de propor à Imavox [editora entretanto extinta] a gravação deste disco, deixei-me tocar por essa veia mais “rockeira”, mais progressiva», sendo que os músicos que se reuniram à sua volta tinham esses mesmos gostos e características. "Changri-Lá" é, por isso, «uma boa imagem daquilo que eu curtia enquanto músico, na altura», conta. «É algo extemporâneo. Daí, talvez, o interesse que possa ter – porque não é um exemplo daquilo que a minha carreira de músico foi antes dele e continua a ser nos dias de hoje». 

No encarte comemorativo que acompanha esta reedição física, o álbum é descrito como o primeiro momento de libertação musical do seu autor, visto que lhe deu a possibilidade de se encarregar dos arranjos, o que não aconteceu nos discos anteriores. A “assinatura” estética de "Changri-Lá" é, assim, a de Carlos Alberto Vidal. «O disco não foi feito com uma “banda”, mas sim com um conjunto de músicos que depois se dispersaram», conta. Para além de Carlos, o conjunto era composto por “Mané” (João Andrade Olias), “Necas” (que tocaria, também, com a Banda Atlântida e os Ananga-Ranga), “Rakar”, “Zé” Alberto, Rui Cardoso, Correia Martins, Rogério Barroso e Nuno Pimentel. Carlos já perdeu o rasto à grande maioria, continuando a manter contacto com “Mané” por ser, curiosamente, o seu otorrinolaringologista. A presença deste no álbum não é descurada: «Foi com ele a coordenar os trabalhos que conseguimos a estética que queríamos para o "Changri-Lá"», explica Carlos. E foi através dele, aliás, que se reuniram os músicos aqui presentes.

As canções, essas, partiram de Carlos Alberto Vidal, exceção feita ao último tema presente no álbum, “Nascer”, da autoria do pianista Nuno Pimentel. «Agarrei na guitarra, compus as canções, fiz as letras, e com o “Mané” comecei a imaginar a estrutura que estas viriam a tomar. No contacto com os músicos é que deixámos que cada um interpretasse, à sua maneira, cada qual dos temas». No fundo, as gravações de "Changri-Lá" funcionaram, um pouco, como se se tratasse de uma obra trabalhada por um grupo de jazz. E, destas sessões, não houve qualquer canção que ficasse de fora, ou que tenha ficado na gaveta até hoje. O facto de terem ocorrido após o 25 de abril não proporcionou uma maior liberdade criativa, mas talvez tenha impedido a censura das letras. «É um disco livre, produzido de uma forma livre. Felizmente, a sua gravação ocorreu numa altura em que o país tinha acabado de sair da ditadura, pelo que estávamos todos felicíssimos com a liberdade conquistada. Se há algo que o possa ligar a isso é a certeza de que todos trabalhávamos na música com um espírito que não esquecia que vivíamos, socialmente, tempos revolucionários, novos. Quem sabe, talvez isso possa influenciar a atuação das pessoas...», esclarece.

Não há política em "Changri-Lá", mas há espiritualidade, e muita. «Estava muito voltado para dentro, um bocadinho também por via da imaturidade», revela. «Se eu hoje fizesse um disco versando exatamente os mesmos temas, penso que faria algo de mais profundo. Mas havia essa ânsia de liberação espiritual - “Shangri-lá” é uma palavra que pode significar “paraíso”, um sítio perfeito. Quis falar de algo que pudesse ser o tipo de coisa pela qual todos ansiamos». Logo pelo título se percebe que esta espiritualidade não é apenas judaico-cristã, e “Maharaj-Ji” contribui também para essa perceção. «A prática do bem e da ajuda ao próximo sempre foi uma constante. Sermos melhores Homens, mais justos, com uma conduta irrepreensível. “Shangri-lá” é suposto ser um local habitado por pessoas a comportar-se dessa forma. Essa busca de um “eu” interior que levasse a um “eu” exterior sem pecados pareceu-me comum a milhões de jovens nessa altura». Os anos 60, lá está, e o movimento hippie a terem aqui algo a dizer.

Se eu hoje fizesse um disco versando exatamente os mesmos temas, penso que faria algo de mais profundo. Mas havia essa ânsia de liberação espiritual

Carlos Alberto Vidal amadureceu, mas continua a apontar no sentido do bem – mesmo perante o mundo que agora se lhe apresenta aos pés. «O mundo está estranho. Há muita gente a praticar o bem, mas também há sintomas de tanta coisa errada...», diz com tristeza. No entanto, nota que «o mundo não é negativo», bem pelo contrário. «Do ponto de vista geral, a civilização vai dando os seus passos, coxeando aqui e acolá. Ainda existe o sonho de que se pudéssemos reparar esses males, poderíamos viver num mundo tranquilo, numa paz universal total». E "Changri-Lá" poderá voltar a transmitir essa mensagem positiva, tal como o fez há quatro décadas. «Não digo que um disco possa virar uma pessoa do avesso, mas pode ser uma ajuda humilde. O "Changri-Lá" é um apelo às boas práticas, ao bem-estar, e não um disco assente em ideias mais obscuras. Não é recreativo, como outros que acabei por gravar, ou como acontece com o Avô Cantigas – que tem temas mais educativos, mas outros são absolutamente recreativos. O "Changri-Lá" tem uma mensagem, uma identidade, e penso que quem escutar esta reedição poderá sentir-se influenciado pela mensagem. O que me dá prazer», visto que, ressalva, «não gostaria de ser pessoa de maus exemplos.»

 

O passado dentro do presente

Pensemos no quão a figura do Avô Cantigas tem evoluído ao longo dos últimos 35 anos, até em termos sonoros. O Avô tem-se mantido constantemente moderno, o que, paralelamente, faz com que o seu intérprete também o seja. Será esta reedição a primeira oportunidade que Carlos Alberto Vidal tem de olhar para o passado? Sim e não – porque Carlos nunca foi saudosista, visto que, com o Avô Cantigas, «sempre foi rodeado por bons músicos», e não se limita «a fazer temas básicos, apenas por serem para crianças». Ou seja; algo do rock progressivo que aqui escutamos, e se não for o som será o espírito, passou posteriormente para a personagem. Sendo que "Changri-Lá" é o grande exemplo dessa sua vertente, sem que exista qualquer tipo de pena por esta ter ficado na sombra. «Nem pensava no assunto. E isto que veio a acontecer [a reedição] foi curioso; é como se eu pudesse dizer que me caiu do céu, já que não fui eu que fui à procura [de recuperar o álbum], e sim as pessoas que vieram ter comigo».

créditos: Paulo Rascão | MadreMedia

Reabertas as portas deste paraíso escrito "Changri-Lá", com “c” de “Carlos” em vez do “s” habitual («Porque errámos... Ninguém reparou que “Shangri-lá” se escreve com “s” antes da capa ir para a fábrica», confessa entre gargalhadas), surge a dúvida; porque não foram elas abertas mais cedo? Não seria possível conciliar o Avô e a sua “sombra”? «Sim. Se tivesse pensado nisso... Foi uma questão de andar com a cabeça voltada para outros assuntos e, felizmente, nessa área de trabalho que é a música para crianças, a coisa correu bem ao ponto de me absorver 100% do tempo», conta. No entanto, o próprio vê na reedição de "Changri-Lá" o ímpeto necessário para concretizar «uma ideia que tem surgido de há uns tempos para cá, que é a de editar uma outra música, mostrar uma outra faceta de um músico que tem estado oculto», sendo que, revela, tem repertório para isso. Neste sentido, só o futuro dirá se Carlos Alberto Vidal poderá dar uso a todo o embalo criativo despoletado por este novo interesse na música que já fez.

Aliás, o próprio Changri-Lá poderá ser homenageado num concerto especial, à semelhança do que fez José Cid com o seu próprio "10 000 Anos Depois Entre Vénus e Marte". Basta que, para tal, haja músicos dispostos a aprender a tocar estas canções – uma tarefa que ficou a cargo da Babilónia, que foi quem sugeriu a ideia de transpôr as canções de Changri-Lá para o(s) palco(s). «Eles falaram-me nisso. Se existissem músicos [capacitados] para tocar estas canções, eu não poria obstáculos em interpretá-las ao vivo. Só não sei até que ponto esse trabalho de produção poderá ser viável», explica, ressalvando que o seu papel seria, sempre, o de cantor: «Neste disco toquei guitarra. Mas nunca desenvolvi muito a minha vertente de músico, transformei-me mais num cantor e compositor. Encaro essa possibilidade como uma em que eu seria a voz do "Changri-Lá" ao vivo». Um público que o acolhesse existirá, certamente.

Neste disco toquei guitarra. Mas nunca desenvolvi muito a minha vertente de músico, transformei-me mais num cantor e compositor

Grosso modo, a reedição de "Changri-Lá" faz também parte do boom recente da música portuguesa, onde novos artistas, novos festivais e até mesmo novas editoras vão surgindo de forma espontânea (a própria Babilónia, e a reedição, não estão disto isentas. A masterização ficou a cargo de Pedro Augusto, também conhecido como Ghuna X, e das fileiras da editora faz parte João Sarnadas, o Coelho Radioactivo). Contudo, Carlos confessa-se desatento. «Ouço o que passa por mim, não vou à procura das coisas. Aquilo que tem maior destaque acaba por me atingir, como a um cidadão normal que ouça música, rádio, veja televisão e tenha noção daquilo que é mais conhecido. Não sou uma pessoa que esteja sempre à procura de saber aquilo que se faz, mas justifico-o com a realidade que é o Avô Cantigas, que toma muito conta da minha vida atual», diz. Mas se ele não presta atenção, prestemos-lha nós; quarenta anos depois, o "Changri-Lá" permanece bem vivo – e devemos escutá-lo sem receios. Quem sabe se o mundo não poderá realmente mudar a partir daqui.

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