Domingo, 26 de Fevereiro de 2017. É noite de óscares e já são quase 5 da manhã quando Warren Beatty e Faye Dunaway - a dupla do clássico “Bonnie & Clyde” - sobem ao palco para anunciar o vencedor do Óscar mais importante da noite. As apostas estavam na mesa e o jogo estava renhido, com Moonlight e La La Land como principais concorrentes. O suspense aumenta, e quando finalmente os apresentadores anunciam (erradamente) que o melhor filme do ano é La La Land, instala-se o caos. Ouvem-se aplausos e gritos vindos de toda a parte: o filme mais querido do ano acaba de ser premiado com o rei dos prémios de cinema.

No entanto, esta excitação durou cerca de 4 minutos apenas. Aparentemente, o envelope entregue a Warren Beatty era suplente do óscar de melhor atriz e após os principais produtores de La La Land fazerem os seus discursos de agradecimento, é anunciado que o verdadeiro o vencedor da noite seria Moonlight. Estávamos perante um dos maiores fiascos da história da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Apesar de toda a confusão que se decorria no palco, nessa noite aconteceu algo que me deixou bastante mais curioso. A euforia e excitação que dominavam minutos antes, era agora diferente. Ainda que grandes aplausos e assobios se tenham ouvido depois da correção do prémio, a sensação era outra. Fora do teatro (e do ecrã) não se percebia como é que Moonlight, um filme tão pouco popular em Portugal, nomeadamente quando comparado com o romance mágico de Emma Stone e Ryan Gosling, tinha ganho um prémio tão importante como o Óscar de melhor filme. Será que realmente faz sentido? Após meditar sobre o assunto, cheguei a um número suficiente de argumentos que me permitem justificar que sim, Moonlight é verdadeiramente o filme do ano.

Para quem não viu o filme, Moonlight é sobre a da história de Chiron, um jovem negro que é perseguido pelos seus colegas por ser diferente, sofrendo fortes episódios de bullying. Para tornar a sua situação ainda mais difícil, o pequeno Chiron não tem qualquer tipo de compreensão em casa, pois a sua mãe, Paula, está gravemente dependente de drogas e prostitui-se para sustentar o seu vício.

Chiron acaba por encontrar refúgio apenas junto de um casal mais velho, que o acolhe na sua casa. A sua relação com o casal, Juan (Mahershala Ali) e Teresa (Janelle Monáe), vai se desenvolvendo ao longo do filme e Moonlight dá-nos a oportunidade de seguir toda a vida desta personagem, desde os momentos de desespero e de culpa que Chiron sente, ao episódio que constrói o clímax do filme: a aventura homossexual que tem lugar durante a puberdade com o seu (aparentemente único) amigo Kevin e que assombrará o protagonista para toda a sua vida.

Com base nesta breve descrição do filme, dá para antever que se trata de uma história dura mas bastante realista. Apesar de não o ser, o filme acaba por funcionar como um documentário que retrata de forma precisa uma situação que hoje se passa no sul dos Estados Unidos da América. Chiron é confrontado com questões de identidade, em que a sua existência vai contra os padrões da sociedade masculina onde vive. Os temas complexos que o filme aborda de forma natural são expostos ao longo de toda a narrativa, com um grande foco nas personagens que os vivem.

Ao ver Moonlight, temos a sensação de mudar de corpo por umas horas e de acompanhar de perto o mundo na perspectiva de Chiron, que experiencia uma história tão profunda e repleta de sofrimento, que mesmo sentados no conforto de uma cadeira de cinema, acabamos por partilhar o seu tormento e sentir os seus dilemas na pele, o que se deve essencialmente à intensidade com que nos são apresentadas as personagens.

Da peça “In moonlight the black boys look blue” nasceu o filme

Sem qualquer excepção, todos os atores desempenham um papel fenomenal, destacando-se Mahershala Ali e Naomie Harris que elevam o seu trabalho a um nível de autenticidade extraordinário. O filme venceu também o óscar de melhor argumento adaptado, sendo que se baseia na peça de teatro de Tarell Alvin McCraney, “In moonlight the black boys look blue” que é transposta para o grande ecrã mantendo-se fiel à encenação original mas de uma forma completamente cinematográfica.

Importante será referir que o filme se divide em três partes consoante as diferentes etapas da vida do protagonista. Na primeira parte (Little) seguimos a infância de Chiron, um pequeno rapaz frágil e inocente que vive num ambiente atribulado. Na segunda parte acompanhamos Chiron, o jovem adolescente que se depara com dilemas pessoais e que se tenta afirmar perante os seus colegas, mesmo após a morte do seu suporte de vida - Juan. Por fim, a terceira parte (Black) conta-nos acerca do “durão” que Chiron se tornou, vendendo droga nas ruas e usando dentes de ouro, que contrastam com a sua experiência traumática.

Nesta terceira parte conseguimos entender claramente que o forte físico de Black não passa de uma couraça que o protege, reprimindo todo o sofrimento e todos os insultos de que foi alvo no passado, mas que na verdade esconde um ser frágil e solitário. Nas três partes do filme a representação de Chiron é notável e, especialmente na terceira parte do filme, Trevante Rhodes representa esta situação de vulnerabilidade da personagem com uma naturalidade evidente.

“The middle of the world” é a música que mais se destaca da banda sonora de Moonlight. Trata-se de uma composição de cordas majestosa e que reflete a sensação de desamparo da personagem principal. Toda a música do filme, intercalada com agudos momentos de silêncio, está em sintonia com os sentimentos de Chiron. O trabalho de Nicholas Britell apenas não levou a estátua para casa, porque o seu adversário se tratava de um (muito bem conseguido) filme musical - La La Land. Ainda assim, a forma como os acordes de música clássica contrastam com o ambiente do filme, permite-nos observar para além do enredo e absorver as fortes sensações que pairam ao longo da narrativa.

Acompanhando a banda sonora, está a fotografia de James Laxton, que usa as cores roxas e verdes neon, juntamente com a luz da lua cheia, para realçar a beleza dos corpos negros e dos seus movimentos. Como estrela do filme encontra-se o realizador Barry Jenkins dando uso a planos impactantes e dinâmicos que preenchem a grande tela de cinema, e que por vezes lembram a mestria filosófica de Terrence Malik.

Raramente o melhor filme do ano é o filme mais popular, e é nesta dimensão que Moonlight se vem sobrepor a La La Land. Sendo um filme mais simples que retrata temas altamente complexos de forma precisa, com planos visualmente apelativos e com uma história impactante, Moonlight torna-se uma janela que dá a conhecer intimamente uma realidade alternativa e desoladora.

Na minha opinião, não há nada mais bonito do que um filme com planos exigentes, uma fotografia digna de exposição e uma banda sonora que é um autêntico concerto, e Moonlight, sendo um filme poético e repleto de sentimento, está claramente neste grupo e merece por isso o prémio que lhe foi entregue no passado domingo.

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