Bowie participou em muitos filmes de ficção (fora os incontáveis documentários sobre as suas personas), mas há três que retratam particularmente a sua personalidade extraordinária. Além de “O Homem que caiu na Terra”, são memoráveis “Merry Christmas, Mr. Lawrence” (Nagisa Oshima, 1983) e “Just a gigolô”, dirigido pelo grande actor David Hemmings em 1978, e que marca a última aparição de Marlene Dietrich.

Só por estes filmes, o homem que nasceu David Robert Jones poderia ser sempre lembrado. Mas o cinema era apenas uma das facetas do artista que muitos consideram como o mais criativo e representativo da música do século XX. Também fez teatro; a apresentação a solo na Broadway, na dificílima peça “O Homem elefante”, deixou uma impressão inesquecível.

Aliás, a teatralidade era a marca de Bowie, pois durante a sua longa carreira musical, começada em 1969 com o álbum “Space Oditty”, viveu uma sucessão de personagens, umas esfuziantes e outras depressivas – hermafrodita, gentleman, ou ainda com aparente negligência – tudo estudadíssimo, claro. Iman, sua mulher desde 1992, contou uma vez: “Apaixonei-me por David Jones, não por David Bowie. Bowie é apenas uma personagem. Cantor, entertainer. David Jones é o homem que eu conheço.”

Só ela conhecerá esse Jones. Talvez Angie, a sua primeira mulher (e mãe do realizador Duncan Jones) também o tenha conhecido. Para o mundo, as personagens sucediam-se e cada uma significava uma nova fase, não apenas estética, mas sobretudo psicológica e musical.

Há duas qualidades de Bowie que são menos conhecidas pelo público que simplesmente aprecia o som. Era um experimentador, um visionário. Por baixo do rock’n’roll dançável de que todos gostavam, há aventuras musicais únicas, experiências com novos instrumentos, novos sons, incontáveis influências ou apropriações de musicalidades orientais, africanas, alternativas.

Depois, Bowie andava sempre à procura de músicos talentosos, famosos ou desconhecidos, que lhe pudessem trazer outras possibilidades. No seu último álbum e testamento, “Blackstar”, lançado na semana passada, participam músicos de jazz completamente desconhecidos fora dos círculos do East Village.

Como grande artista seguro de si, Bowie não tinha receio do talento dos outros. Até os ajudava, como fez com Iggy Pop. O cantor dos “Stooges”, uma banda proto-punk da década de 60, estava internado num asilo, ao fim de anos de drogas e violência auto-infligida. Bowie foi buscá-lo, responsabilizou-se por ele, organizou-lhe uma tournée de relançamento em que se limitou a acompanhá-lo ao piano, e produziu-lhe o primeiro disco a solo – “The Idiot”, um grande sucesso.

A sua carreira, com 25 álbuns de estúdio e centenas de apresentações, inclui tantos sucessos que é impossível enumerar mesmo aqueles que toda a gente conhece. Músicas e letras que serão sempre de culto, como “Starman”, Space Odity”,"Let's Dance", "Heroes", "Under Pressure", "Rebel, Rebel", "Life on Mars", "Suffragette City", ou “All the Young Dudes”. Esta última foi feita para ajudar Ian Hunter a relançar o grupo “Mott the Hoople”.

O seu talento foi reconhecido fora do rock’n’roll, e no auge da carreira até teve capa na agora desaparecida, e na época muito conservadora, revista “Time”. Em 2013 o Victoria & Albert Museum dedicou-lhe uma exposição com 300 objectos relacionados com a sua obra: modelos, desenhos (sim, ele também pintava!), rascunhos, posters, objectos. Há um documentário sobre a mostra, "David Bowie Is", partes do qual podem ser encontradas no Youtube.

No ano passado, Bowie comemorou meio século de carreira com "Nothing Has Changed", uma antologia que mostrava precisamente o contrário: estava sempre a mudar, e para melhor.

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Uma pergunta que muita gente faz é de onde vem o nome Bowie. Escolheu-o porque já havia outro músico Jones (dos Monkees), que aliás é um dos mais comuns na Grã Bretanha e portanto impróprio para um ser vindo do espaço; parece que vem da famosa faca Bowie, que por acaso tem dois gumes – uma alusão ao suposto bissexualismo de Bowie, que não terá mais do que um adereço teatral... Ele mesmo disse que a íris mais dilatada do olho direito vem de um golpe que terá recebido com uma bowie, mas vá lá saber-se!

Quando lançou "Blackstar", Bowie já sabia que o cancro de que sofria há ano e meio ia matá-lo em breve. Daí que a poesia seja tão depressiva e, ao mesmo tempo, tão futurista. Também preparou uma espécie de ópera, "Lazarus", de que há um inquietante clipe de quatro minutos em que aparece com os olhos vendados, levitando na cama de um hospital psiquiátrico.

É o testamento de uma estrela que levou a felicidade a milhões de pessoas, ao mesmo tempo que apresentava questões mais profundas sobre o nosso destino. Uma estrela que continuará a brilhar, para sempre.

(PS - Tivemos a estupefacção de o conhecer em Londres, numa festa da Absolut na Pharmacy. Falamos de banalidades – o que se pode dizer a uma pessoa da craveira de Bowie que ele não tenha ouvido? Era baixinho – sim, baixinho! – e nada arrogante, com a simplicidade de uma pessoa comum. Um autêntico guru, segundo a definição de Henry Miller: “Os verdadeiros sábios são aqueles que preferem ouvir em vez de falar”)