Maria Filomena Mónica foi uma adolescente rebelde. Problemática, como se diz agora. E foi para aconselhar uma sobrinha que se lembrou de ir buscar o diário que a ajudou a ultrapassar os tempos mais conturbados.
Conheceu António Barreto, com quem é casada, através de Vasco Pulido Valente, com quem vivia na altura. Costumavam alugar a casa do Algarve de Francisco Sousa Tavares e, naquele ano, pouco depois da Reforma Agrária, Vasco resolveu levar António. Mena Mónica, como é conhecida, não gostou: "É um reaccionário, não estou para o aturar". Como não houve cedências, escolheu uma amiga da extrema-esquerda, Maria de Fátima Bonifácio. O cenário mudou.
Nesta entrevista, Maria Filomena Mónica não esconde que tem cancro, mas, muito mais do que da doença, fala da vida, de como se sente privilegiada, de como gostava de ter aprendido a tocar violoncelo e do seu novo livro, «Os Pobres», que será lançado no início de Dezembro e que é inspirado na primeira visita que fez a um bairro da lata.
Mas há o outro lado. Passaram mais de 40 minutos até o nome de José Sócrates, o ex-primeiro-ministro que a socióloga uma vez descreveu como «uma espécie de Dâmaso Salcede, cuja única preocupação na vida é ser “chic a valer”», vir à baila.
E se acreditou em Nuno Crato até descobrir que afinal devia ser posto de castigo com um daqueles cones que assinalavam os "burros" da classe, agora desconfia do ministro Tiago Brandão Rodrigues, “um amador”. Nem António Costa escapa.
O Nobel da Literatura foi atribuído a Bob Dylan, já soube?
Soube agora mesmo.
O que lhe parece?
Acho óptimo. Acho formidável, penso que ele é um grande poeta, está entre os cantores da minha geração que perduraram, ele e o Leonard Cohen. Que eu ainda sou capaz de ouvir. O Bob Dylan custa, tem uma dicção má, não é um grande cantor, mas é um grande letrista, um grande poeta. É justo, é inesperado e fiquei contente, e ainda por cima há um livro que saiu há cinco ou seis anos, não sei exactamente, com as letras dele, editado pela Relógio d’Água, penso que é uma edição bilingue, que devo ter algures no caos das minhas estantes. E em vez de ser um daqueles nomes de que toda a gente estava à espera tive uma surpresa e foi uma surpresa agradável. Sinceramente, merece.
Se lhe pedissem para dividir a literatura em escalões ou patamares onde ficaria Dylan?
Eu, dizem, sou muito elitista, acredito mesmo que há uma cultura superior e uma cultura popular. Dentro da cultura popular há coisas muito boas, mas a maior parte é muito má e Dylan faz parte da cultura popular e das coisas muito boas. A minha única dúvida era, como eu separo a cultura superior e a cultura de massas, se mesmo os muito bons da cultura de massas, que é o caso de Dylan e Cohen, estavam à altura do melhor que tem a cultura superior. Não me recordo de todos os nomes de que se falava, mas gosto muito do israelita, Amos Oz, li as memórias dele e são óptimas. Se eu comparar Amos Oz e Dylan, talvez preferisse o Amos Oz, mas pode ser que seja um preconceito, por pensar muitas vezes que a cultura popular é uma cultura menos sofisticada que a cultura superior.
Porquê a distinção entre cultura superior e cultura inferior?
Não é bem inferior, é cultura popular…
Eu disse inferior de propósito, porque se há uma superior, a outra tem de ser forçosamente inferior.
Ok, ok. A cultura popular toca uma gama menor de sentimentos e de artifícios estéticos. Dentro da música, a música de que eu gosto mais é a ópera, por exemplo. Se eu comparar um music hall muito bom, como «Les Misérables» ou «Cats», com a ópera, apesar de tudo não chega à sofisticação de Verdi. É nesse sentido que penso que a cultura superior é mesmo superior, é capaz de nos comover, de nos alegrar, de nos dar uma gama maior de sentimentos do que a cultura popular. Mas, como admito, gosto das duas coisas e pode ser um preconceito.
Isto acontece no dia em que morre Dario Fo, também ele Nobel da literatura.
Eu estou muito alheada da cultura italiana, certamente para mal.
Mas é sobre a vida e sobre a morte que quero perguntar. Acredita no céu e no inferno?
Se eu quisesse dizer uma coisa engraçada dizia que acreditava no Céu e no Inferno, mas não, não acredito nem numa coisa, nem noutra. Quando morremos, morremos mesmo. Deixei de ser católica aos 17, 18 anos.
Não há Papa que me diga que tenho de acreditar na Imaculada Conceição
Deixou de ser católica porquê?
Estive 14 anos num colégio de freiras, tive sempre de rezar, e, fundamentalmente, embora na altura eu não percebesse que era isso, achava que era um atentado à liberdade e a pensar pela minha própria cabeça eu estar a aceitar dogmas. Era uma coisa que se casava mal comigo. Sou eu que determino o meu destino, sou eu que determino aquilo em que acredito, não há Papa que me diga que tenho de acreditar na Imaculada Conceição. Depois, e isso também aparecerá no livro «Os Pobres», eu vivi numa espécie de redoma dourada: vivia na Rodrigo da Fonseca e não sabia que havia pobres, ia sempre com uma criada que me levava ao colégio de freiras, as Doroteias, na Artilharia Um, eram três minutos, e até aos meus 16 anos a minha mãe obrigava-me a ir com a minha irmã Isabel, que tem um ano a menos que eu, e com uma criada, não fosse eu disparatar. Claro que isto era um convite a que eu disparatasse o mais possível mal a criada e a minha mãe desaparecessem do cenário, coisa que fiz. Por acaso estou a ler a Bíblia.
Por acaso?
Foi agora traduzida pelo Frederico Lourenço. E acho que o Antigo Testamento e os Salmos têm passagens muito bonitas, comecei hoje a ler, está ali em cima da mesa. E há muitos valores que são meus e que eu sei que herdei da tradição judaico-cristã, não têm nada a ver com o budismo, nem com o hinduísmo, muito menos com o islão, e há valores que respeito no catolicismo: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede — agora a propósito dos pobres —, mas não sinto nenhuma crise existencial, ou dúvidas de fé, ou o que acontece depois de eu morrer. Não, não é uma coisa que me preocupe.
Um ex-reitor da Católica contava que muitos alunos lhe diziam que não acreditavam em Deus, mas na altura dos exames a capela estava sempre cheia. Acontece-lhe? Rezou, quando soube que estava doente?
Não, nunca rezei, nem mudei a minha atitude. O reitor da Católica actual, Manuel Braga da Cruz, é meu amigo e reza por mim. Portanto há muitos católicos a rezar por mim...
Isso conforta-a?
É-me indiferente. É uma prova de amizade, é como se me visitassem e fizessem conversa comigo. Porque eles se preocupam e são meus amigos, não pela interferência de Deus. Na literatura e na ficção há muitos casos de pessoas que acreditam em Deus e que se revoltam. E há casos de ateus, dou-lhe o exemplo de Adam Smith, que é provavelmente um dos ateus do século XVIII que mais admiro, que morreu serenamente, não teve nenhuma crise existencial. Pelo contrário, Ivan Illich, que era ortodoxo, estava ligado ao cristianismo, teve uma morte muito dolorosa e com muita angústia. Curiosamente, as sociedades contemporâneas afastam a presença da morte e a visão da morte.
Lembra-se do seu contacto com a morte?
Tenho ideia que a primeira morte a que assisti deve ter sido a do meu pai, talvez há 20 anos. Quando cheguei já tinha morrido, e o meu pai era um homem muito sereno, católico, mas não militante. A minha mãe teve Alzheimer durante 11 anos e como enlouqueceu não sou capaz de dizer se sofreu com a ideia de ir para o Céu ou para o Inferno. Por falar nisso, acho que nunca vi mortos. Lembro-me que quando a minha mãe morreu a minha filha me perguntou: ó mãe, acha que leve os miúdos? E eu disse-lhe que sim, faz parte da vida, traz os três. O Miguel era muito pequenino, tinha para aí sete ou oito anos, mas viu um caixão. O culto da morte desapareceu muito. Por acaso o meu pai era de uma aldeia perto de Tomar, portanto tanto o meu pai como a minha mãe foram enterrados perto de Tomar, num cemitério até bonito, com um declive, aquela parte de Ferreira do Zêzere tem muitas árvores, e iam os homens com as opas vermelhas e a cruz de prata, e há uma parte do ritual católico de que às vezes tenho saudades.
Qual?
Às vezes tenho saudades da missa em latim e irrita-me imenso porque tenho dois ou três amigos que dizem, "pois, são padres…". Um dele é o padre António Vaz Pinto. E ainda outro dia o encontrei na feira do livro e lhe disse, "ai, António, que porcaria, estas missas com as pandeiretas e umas meninas todas desafinadas. Ainda por cima a missa devia ser em latim". E ele respondeu-me: "Mas tu dizes cada coisa, isso é reaccionaríssimo". Pois é, mas é saudade da missa como eu a conheci: o padre de costas para os fiéis, a gente não percebia absolutamente nada do que ele dizia porque era em latim… E isto liga-se mais tarde quando fui para Oxford com a maior parte das pessoas que eram ou tinham uma tendência religiosa e eram anglicanas, e sobretudo com os judeus. Eles sabem muito de teologia e eu não sabia nada, sabia dizer o pai-nosso e a ave-maria, a minha cultura teológica era nula. E sentia-me muitíssimo inferiorizada e critico muito a cultura católica como é ensinada em Portugal. Ou seja, é decorar uma orações e mais nada. E cá diziam-se missas em português e em Oxford diziam-se missas em latim. Mas eu não sou contra, tenho duas amigas católicas que respeito, com quem de vez em quando falo. Mas a maior parte dos católicos acho que são muito hipócritas e sobretudo ignorantes, não conhecem bem a religião. Vá lá perguntar coisas sobre as Epístolas de São Paulo ou como é que o Antigo Testamento se junta ao Novo Testamento! Não sabem nada, zero. E não é só da minha geração, 40/50 anos também não, só sabem andar para lá nas missas com as pandeiretas a tocar aquelas bodegas.
Sente-se reacionária?
Não, de todo. Sou liberal, se as pessoas gostam de pandeiretas, feel free. Eu não gosto. Como eu não sou parte do rebanho, em princípio até nem devia pronunciar-me sobre isso. Mas como tenho uma cabeça livre e uma língua bastante activa, acho que tenho o direito. E é nostálgico, tenho saudades, porque achava que era mais bonito. E como gosto muito de música clássica… Por exemplo, está um disco atrás de si que é uma missa do Schubert e, desde que estou doente, praticamente só oiço Schubert. Como as missas são em latim, estou muito ligada a essa tradição. Em Inglaterra, nas escolas, nas melhores, há uma grande tradição de coros, cantam muito bem. E aqui, ou são beatas, daquelas «avé, avé», que vão a Fátima, ou então são umas meninas queques a tocar guitarra e umas coisas em português que não me dizem nada. Não quero impor, mas estou fora. E penso que o que é importante, em tudo na vida, é o exemplo. E os exemplos que os católicos deram e dão em relação aos pobres, no caso, não me levam a ter grande admiração.
Há pouco falou nas meninas queques…
Que eu fui, não nego o meu passado. Ainda outro dia uma prima me mandou uma fotografia do casamento dela, fui madrinha, casei-me em 63, ela em 65, e mandei uma cópia a duas amigas a dizer: olha eu em versão queque. Elas nem queriam acreditar, porque eu estava de luvas pretas, com um casaco de vison e mais qualquer coisa extraordinária. Foi uma fase da minha vida.
Mas hoje há muito mais definições: queques, betinhos, dreads…
Os mitras!
Se a classe média tira os filhos das escolas públicas, elas pioram porque as pessoas que sabem protestar não o fazem
Isso, mitras. São hoje a distinção entre a cultura superior e a cultura popular, mas com uma série de camadas, digamos assim.
E aí a escola devia dar acesso aos mitras, aos pobres, não digo que todos consigam, mas que dê acesso através de concertos e da educação musical — a educação musical para mim é absolutamente essencial —, que os miúdos que vêm dos bairros que já não são da lata mas são sociais aprendam a tocar um instrumento. É para isso que eu pago impostos, não é para ir para as rendas das auto-estradas ou o que quer que seja. E em dez miúdos basta-me um ficar a saber tocar um instrumento e gostar para valer a pena. E é uma função nobre do Estado, o apoio aos desvalidos e uma educação que seja igual para todos. Porque eu não gosto da ideia de haver as escolas privadas e as escolas públicas muito separadas. As escolas privadas podem existir, porque são as pessoas da classe média como eu que são capazes de ir às escolas protestar, porque as mães dos miúdos muito pobres não só não têm vocabulário como não têm tempo. Se a classe média tira os filhos das escolas públicas, as escolas públicas pioram, naturalmente, porque as pessoas não protestam.
Protestava?
Tenho uma costela contestatária e protestava muitas vezes. Os meus filhos andaram no Liceu Pedro Nunes e antes na Manuel da Maia, um sítio até mau, porque tinha muita droga, ali do Casal Ventoso. Não lhes fez mal nenhum, não morreram drogados.
E ainda podem ganhar um Nobel…
Ah, podem, porque um está ligado à música — isso é que eu gostava. Mas até para os queques, faz-lhes mal estar numa espécie de aquário, porque não vêem o mundo, crescem entre primos, conversam entre primos e aquilo tira-lhes possibilidade de um desenvolvimento mais multifacetado. Penso que a escola devia dar música clássica. Eu sei que é caro, não têm instrumentos, não há nenhuma escola pública que tenha piano, violoncelo, etc.
Acredita neste ministro da Educação? Vem de fora, tem mais mundo?
Não percebo muito bem, parece-me que anda um bocado aos papéis. Primeiro, penso que não tem maturidade suficiente, depois promete coisas que não sabe se pode cumprir — disse que ia fazer a escolaridade obrigatória a partir dos quatro anos, mas só depois de prometer é que descobriu que não tinha salas nem professores. É um amador.
Bob Dylan é da sua geração. Como é que a sua geração sente o tempo que estamos a viver?
[Pausa] As pessoas que têm 70 anos como eu [74 a 30 de Janeiro] tendem a ver o momento actual de forma apocalíptica. Especialmente se forem europeus. Ou seja, os europeus eram no mundo em geral, há 100 anos, muitíssimo privilegiados: na esperança de vida, na mortalidade infantil, nestes indicadores de bem-estar socioeconómico. É por isso que sentimos que tudo se degradou: os nossos filhos não têm emprego, os nossos netos têm menos possibilidade de frequentar boas universidades porque são muito caras, há uma sensação de perda e a ideia de que pode haver até uma terceira guerra mundial, porque há o terrorismo. Uns factores são reais, e merecem o nosso pessimismo, outros não tanto. Mas, temos de ter em conta que, por exemplo, a taxa de mortalidade infantil na China ou na Índia está quatro vezes menor. Se olharmos para o mundo, o mundo não está todo pior. Pelo contrário, há zonas do globo que melhoraram muitíssimo a vida das populações.
Já voltamos aqui, à questão mais socioeconómica. Do ponto de vista cultural, o que é para sai mais desagradável no mundo contemporâneo?
É o politicamente correcto. Enerva-me. Embora eu nunca tenha sido fanática do Maio de 68, achava que flores na cabeça eram uma coisa idiota, havia uma espécie de alegria e de optimismo em que tudo era possível, que desapareceu. Noto que os meus amigos olham com enorme nostalgia para o passado sem verem que éramos uns privilegiados socialmente, os nossos pais ou eram licenciados ou tinham herdado e vivíamos em casas boas, mas havia uma miséria horrível. Em Portugal, em 1940/50, 80 por cento da população era analfabeta. E essa parte desaparece do cenário, é só o "isto está horrível", "nunca esteve tão mau", "vamos cancelar todos os nosso projectos que vem aí a terceira guerra mundial".
A guerra é real e assustadora, não?
Sim, o mais assustador é de facto o islão, e aí é que me preocupa que o ocidente não se afirme como bastião de valores. Por exemplo, o facto de a constituição da União Europeia não ter lá a palavra cristianismo foi uma cedência ao politicamente correcto e ao islão. A civilização ocidental é herdeira da tradição judaico-cristã, portanto devia lá estar, não temos de ter vergonha, especialmente perante um islão totalmente agressivo que acha que Maomé e o seu profeta é que devem comandar e vir fazer califados aqui para a Península Ibérica. Como em todas as fases de transição, há coisa boas e más e coisas boas se olharmos o mundo inteiro e não apenas o que se passa na nossa rua.
«Os Pobres», que será lançado em Dezembro, também fala nisso. Como surgiu a ideia do livro?
Comecei a escrevê-lo porque uma adolescente veio cá a casa conversar comigo. "Sei que a tia teve uma adolescência muito turbulenta, como estou a ter", como foi, como não foi, e eu lembrei-me, espera aí, que eu tenho um diário desde os 13 anos e só tenho o diário em momentos muito dolorosos da minha vida. E tenho agora um dos últimos dois anos. A minha vida, depois de eu morrer, deve parecer aos meus descendentes uma espécie de tortura permanente, o que não é verdade, porque houve momentos muito alegres. Houve uma parte catártica e quando eu tinha esses 14, 15, 16 anos fiz o diário e comecei a ler-lhe umas passagens. Não tinha nada a ver com pobres… Quando ela se foi embora comecei a ler e era a primeira ida aos pobres, quatro páginas.
Descrevia a o que viu, o que sentiu?
Era um miúdo que não tinha sapatos e portanto não podia jogar à bola, vivia num bairro da lata, não podia ir à escola porque não tinha sapatos… Visitei o bairro agora, até pensei que tivesse desaparecido, mas não, é mesmo ao pé das Amoreiras, já não tem os telhados de zinco mas continua uma coisa muito triste e desolada, com uma habitação muito degradada. Eu a pensar que chegava a casa, tinha cobertores, tinha jantar, tinha duas criadas que me serviam à mesa e que ao meu lado havia miúdos com fome, parecia que aquilo era impensável — como é que se podia viver assim, como é que se vive numa sociedade tão desigual. Quando li aquilo achei que, tendo eu 16 anos, parecia uma patetice de uma miúda de 12. Parecia demasiado ingénuo. Mas estava lá escrito, não inventei. Depois a minha filha leu e perguntou: "A mãe tem a certeza que tinha 16 anos quando escreveu aquilo? Está muito elaborado". Havia esta divergência. Não está com erros, porque eu não dava erros, mas o que ressalta dali é o espanto: como é que se vive numa sociedade com esta desigualdade social?
Como é que começa o livro?
Eu começo o livro assim: quando eu tinha 16 anos levaram-me a um bairro da lata em frente ao Liceu Francês e eu descobri a pobreza. Que eu não fazia a mais pequena ideia que existisse. Ao olhar aquela miséria considerei que os católicos que eu conhecia, e que estavam familiarizados com essa miséria, não estavam indignados. Por isso a ideia de que houvesse um Deus que permitia uma sociedade tão injusta também ajudou. Finalmente, e mais tarde, ajudou o sexo. Ainda não havia a pílula em Portugal, mas depois chegou e eu achava que devia tomar a pílula, mas a Igreja dizia que os anticonceptivos eram proibidos. E depois nunca mais pensei nisso.
Sou contra as heranças, estragam a vida das pessoas porque se lhes dá à partida qualquer coisa que amolece o medo
Vive de forma coerente? Alguns dizem que é fácil ser de esquerda e viver na Estrela.
Desde os 19 anos que ganho a minha vida. Como me zanguei com os meus pais, enquanto estive em Londres eles pagaram-me o colégio, depois fui expulsa e fiquei mais uns tempos, mas a seguir casei e não tinha dinheiro nenhum. E é-me absolutamente indiferente que digam que vivo muito bem ou que não vivo. Ganho com o meu trabalho e sou contra as heranças, estragam a vida das pessoas porque se lhes dá à partida qualquer coisa que amolece o medo. E sou pela liberdade de estar, mas acho que pessoas que recebem heranças em Portugal podem ser casos dramáticos e isso estraga-lhes a força.
Não herdou nada?
Não e alguns dos meus amigos dizem que penso assim porque não herdei. Fala-se no regresso do imposto sucessório, eu não deixo absolutamente nada, nem aos meus filhos nem aos meus netos, quer dizer, como a lei portuguesa obriga, não dá liberdade de estar, a única coisa que tenho é esta casa. E eu não queria comprar a casa, o senhorio, que em 74 aderiu ao Partido Comunista e não queria ser senhorio, lá me obrigou, mas demorou aí seis anos até me vender a casa. Não tenho problema em que digam que sou pedante… Rica não sou de certeza, tudo o que tenho foi com o suor do meu rosto, que acho que é como deve ser e é nessa ética que tento educar os meus filhos e os meus netos. Nem é preciso dizer nada, eles vêem, é através do exemplo. Sou arrogante num certo sentido, com pessoas que são incultas e têm possibilidade de ser cultas, que defendem opiniões estúpidas e têm obrigação de ser um bocadinho mais sofisticadas… Sou severa nas opiniões.
Por que motivo foi expulsa do colégio?
Quando os meus pais me deixaram ir para Londres eu tinha-me metido numa série de escandaleiras mal saí do colégio de freiras: arranjei um namorado que era tudo o contrário do que uma mãe quer de um namorado para a filha, e aquilo correu mal e eu comecei a desequilibrar-me mesmo psicologicamente e fui com uma amiga para um colégio de freiras espanholas, interno. Nem estive com atenção, a minha amiga ia, eu perguntei à minha mãe se podia ir - o colégio era de resto bastante barato, porque como Inglaterra é um país anglicano o Vaticano pagava e subsidiava muito o colégio. Quando lá cheguei deparei-me com uma coisa que nunca tinha visto em Portugal: eu aqui ia todos os dias ao colégio, mas era até às cinco, depois ia para casa. Aquilo era interno, e era de missa diária, e eu não queria comungar todos os dias, e queria sair, mas não podíamos ir à rua. Fiquei a falar lindamente espanhol, ainda hoje conheço grandes famílias da aristocracia espanhola que frequentavam aquela escola, os irmãos com cavalos, jogavam polo, para dar uma ideia do nível, que era completamente diferente do nosso nível de riqueza. Havia eu, uma belga e uma japonesa, o resto eram basicamente espanholas.
O que fez?
Eu disse não, não vou à missa e vou organizar uma greve. Amanhã ninguém vai à missa. E a belga, que já tinha estado em vários colégios, começou para lá a choramingar, porque a mãe tinha dito que aos 18 anos se ela não fosse expulsa lhe dava um carro. Ai dava-te um carro? Então espera aí e anda cá à varanda (aquilo era num segundo andar): se não fazes greve atiro-te lá para baixo. Ela foi fazer queixa à madre superiora e depois o meu pai, que não a minha mãe, disse isto não é para esta rapariga.
Para onde foi?
Fui viver para casa de uns polacos cujos filhos tinham sido mortos na Segunda Guerra Mundial. Na altura havia alguns polacos em Londres que tinham ficado sem nada por causa do comunismo e da Segunda Guerra Mundial e alugavam quartos a meninas bem ou malcomportadas e eu aluguei. E essa minha amiga, que era muito doce e querida e gostava sempre de andar comigo e achava que eu era maluca e ia acabar a fazer um disparate tal que morria, bem, fui com ela para casa desses polacos, onde fiquei três ou quatro meses até voltar para Portugal. E a belga lá terá ficado a comungar todos os dias.
Voltou a saber dessas pessoas?
Dos espanhóis soube, porque quando vim para Portugal eles eram donos dos vinhos Domecq e fui lá passar um Verão. Depois, como a minha irmã casou em Madrid e eu casei e o meu sogro era embaixador em Madrid, revi muitas dessas espanholas. E também percebi que a riqueza em Portugal era muito diferente da riqueza espanhola. Ou seja, que os nossos ricos são quase pobres e muito iletrados. Porque, por exemplo, estes Domecq já tinham mandado os filhos para o MIT e para Harvard e aqui nem os Champalimaud nem os Mello estavam a frequentar esses cursos. Salazar, de certa maneira, tinha castrado as veleidades dos ricos portugueses de se cultivarem, a eles e aos filhos.
As fortunas portuguesas não são fortunas empresariais de pessoas que correm riscos, são de pessoas que têm uma renda através do Estado
Pobres ou ricos, depende do termo de comparação. O normal é compararmo-nos com os que são melhores e os que estão mais perto.
Somos pobres na Europa, porque se virmos no mundo somos ricos. Nunca pensamos assim, mas é assim que a coisa existe. Em segundo lugar, a riqueza está concentrada e muitos dos ricos, toda a vida, desde D. Afonso Henriques, suponho, dependeram do Estado. As fortunas portuguesas não são fortunas empresariais de pessoas que correm riscos, são de pessoas que têm uma renda através do Estado. Eu estudei um caso clássico, que é o dos tabacos. As grandes fortunas portuguesas, que eram o conde de Farrobo (Quintela), os Burnay, os Ulrich — no caso os antepassados deste Ulrich, que não conheço, mas com quem simpatizo, do BPI —, foram feitas com o Estado, ou seja, o Estado deixava-os cobrar os impostos do tabaco. Assim como agora acontece com estes contratos das PPP. O dinheiro circula, suga, chega ao Estado, e depois o Estado dá-o a uma espécie de arrendatários. Não há risco para esta gente. A nossa cultura empresarial é muito, muito deficiente e diferente da dos anglo-saxónicos e dos nórdicos.
Como é que se muda esta situação?
Não vejo como. A única maneira é através da comunicação social e da opinião pública. É fácil fazer troça do Estado hoje. A personagem de Sócrates, sobre a qual escrevi há cerca de dez anos, a dizer que é um mentiroso nato e compulsivo, é um doente mesmo, tem muita coisa sobre corrupção. Mas é preciso dinheiro para fazer investigação e os jornais também estão mais pobres. Só que tem de ser a imprensa e a opinião pública a dar o mote e a opinião pública é ela própria uma faca de dois gumes, porque os portugueses, todos — menos eu, você e o fotógrafo —, se pudessem também eram corruptos. Há uma grande complacência com a corrupção. Se houvesse uma cidadania muito crítica da corrupção, as coisas talvez mudassem um pouco. Habituámo-nos a ser corruptos. E não me venham dizer que no tempo de Salazar não havia corrupção porque havia, só que era menos gente.
Há pouco falava nos espanhóis, que punham os filhos a estudar no exterior e tinham outra mentalidade. Hoje muitos portugueses estudaram, estudam fora. A mentalidade mudou?
Até já temos um secretário-geral das Nações Unidas e alguém no Goldman Sachs. Uma andorinha não faz a Primavera. Não sei também se qualquer destes lugares adianta o que quer que seja à concorrência. As Nações Unidas são o que são, mas é melhor isso que uma terceira guerra mundial. E estava a pensar no que há de bom na Europa e só vejo o Erasmus, porque a minha neta gostou de lá estar, porque quando fui a Bruxelas achei aquilo tudo um pavor. Penso que a comissária da Concorrência, que é a dinamarquesa Margrethe Vestager, tem tido algum papel no sentido de não deixar fazer estes lóbis fechados e estar atenta à concorrência, até porque vem a propósito do Facebook e da Google, os sítios onde se fazem mais negócios. Acho que a concorrência vai ser mundial e a Europa vai perder bastante. Sobre a concorrência devo dizer o seguinte: a globalização é inevitável, não vale a pena chorar. Era bom era quando não tínhamos de competir com os têxteis do Bangladesh...
Mas o Estado tem aqui um papel, ou não?
Esse é o papel do Estado, pensar o que pode fazer pelas vítimas da globalização. Ou seja, as operárias que ganhavam misérias - mas apesar de tudo ganhavam a vida no Vale do Ave, estão no desemprego. Por isso o Estado o que tem de fazer — e isto quem disse foi o Churchill, em 1906, quando se candidatou a deputado ainda por uma zona muito operária e era como eu, nunca tinha visto pobres — é estabelecer uma rede que proteja quem está a ir para o desemprego devido à modernização das máquinas. É para isso que o Estado serve e cobra impostos, para dar indemnizações a essas pessoas porque o mundo vai ser global.
[António Domingues] ainda não provou nada, vem do BPI, que por acaso é o meu banco, e tem fama de bom gestor, mas tem um salário altíssimo ainda antes de ter começado a trabalhar e de ter provado alguma coisa
O Estado parece ter outras prioridades. Como olha para esta questão do salário do novo presidente da CGD?
No fundo são três questões: uma de legalidade, que tem a ver com a obrigatoriedade ou não de entregar a declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional, e isso é fácil e verificar. A segunda questão é se é moral, porque já se sabe que futebolistas e cantores de ópera podem ganhar grandes salários, professores catedráticos também e que tem de ser sempre o mesmo. É justo que haja uma diferença salarial tão grande entre quem está ao balcão e a pessoa que está a presidir à instituição? O leque entre todos não deve ser tão vasto que permita que os que estão atrás se sintam ostracizados. Há países onde não são permitidas nas empresas diferenças tão significativas entre os diversos cargos, entre o pasto mais baixo e o mais elevado. Por último, ele ainda não provou nada, vem do BPI, que por acaso é o meu banco, e tem fama de bom gestor, mas tem um salário altíssimo ainda antes de ter começado a trabalhar e de ter provado alguma coisa.
Ainda Sócrates, acredita que tem futuro político? Onde vai chegar?
Vai chegar ao manicómio. Não, não, não, ele não vai a sítio nenhum. A menos que os portugueses tenham endoidecido. Quem é que acredita que uma pessoa que não tem bens tenha aquele nível de vida? Deixe ver também o que é que se passa com o tribunal. Eu só espero que o tribunal tenha provas. Eu sei que é difícil e leva tempo, mas que tenha provas de que o homem é corrupto, senão é o fim da justiça.
E não é já demasiado tempo?
Temos de admitir que temos poucos meios, primeiro, e, segundo, que os crimes de colarinho branco são difíceis de apanhar. Finalmente, e para minha surpresa, José Sócrates é muito mais esperto do que eu estava à espera, fez as coisas muito bem feitinhas. Eu também gostava de ter um amigo que me sustentasse. Mas acho que vai ser condenado.
Aparece um político como o Isaltino e dizem que ele fez coisas, e as pessoas perdoam a corrupção, metem aquilo debaixo do tapete
É provável que Isaltino Morais se candidate à presidência da câmara de Oeiras, e nesse caso que ganhe. Foi julgado e condenado. Que significado tem isto e de onde nos vem esta tal tolerância de que falava?
Vem de muito longe e até inclui a religião. Na religião católica há a confissão, ao contrário do que acontece nas religiões protestantes. Nas outras religiões a pessoa faz o mal e a relação é com Deus. Na religião católica vai-se confessar e diz "eu roubei um milhão de euros", ou "fui para a cama com alguém" ou "tomei a pílula", e o padre diz "está bem, reze o acto de contrição e eu dou-lhe a absolvição". A absolvição apaga o mal. Nas religiões nórdicas da Reforma as pessoas ficam muito mais culpabilizadas e angustiadas: será que vou para o inferno? Têm mais tento no que diz respeito à corrupção. Por outro lado, há aquela frase célebre que diz "é corrupto mas faz". Que é a presunção de que os políticos não fazem nada, estão lá para se encher de dinheiro. Aparece um político como o Isaltino e dizem que ele fez coisas, e as pessoas perdoam a corrupção, metem aquilo debaixo do tapete. A parte de nós dizermos 'isto nunca muda' é retórica: nós não queremos mudar. O povo, ou até uma pessoa querer mudar, implica que tenha alguma energia e uma rede de segurança que faça com que não caia de um décimo terceiro andar para a rua. E as pessoas estão quase sempre muito resvés com a desgraça, por isso não querem mudar. Só mudam pela força, se não têm opção.
Um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos veio mostrar que, ao contrário daquilo que era voz corrente, não foi a classe média a mais sacrificada ao longo destes anos de austeridade, foram os mais pobres.
Há uma degradação do debate político. Tem a ver com dinheiro, as televisões não têm dinheiro para contratar pessoas. Assim como assim as comerciais vivem da publicidade e a publicidade demora 12 minutos nas privadas. A RTP tem o despudor de ter publicidade e ainda ter a taxa do audiovisual, que é uma coisa que para mim não faz o menos sentido. E não têm dinheiro ou vontade de contratar pessoas que sejam capazes de falar escorreitamente e explicar aos portugueses o que se está a passar na cena social e política. Estou só a falar na informação. De resto, os políticos só podem ir à televisão enquanto políticos, não como comentadores, a única excepção, para mim, era o Marcelo, porque me divertia. Os escritórios de advogados são outros: não podem pôr lá os pés.
As elites económicas são fracas e más, as elites políticas são corruptas e analfabetas, e as elites sociais são muito reduzidas e julgam que ainda vivem no século XVIII
Temos elites?
Não, não temos. Temos elites medíocres e um povo acobardado. É o cenário mais trágico. O povo vive mal e tem medo do que lhe pode suceder se disser o que tem na cabeça sobre o dia-a-dia da fábrica ou da escola ou o que quer que seja. Vai aguentando a sua revolta. Elites também não temos, nem sociais, nem políticas, nem económicas. Económicas não arriscam, sociais são da antiga aristocracia portuguesa, a maior parte sem grande poder económico, políticas temos os arrivistas da política, que cada vez aparecem menos como homens ou mulheres que acreditam no que quer que seja. Porque a seguir ao 25 de Abril, eu estava em Inglaterra, mas pedi para ficar cá um ano, havia pessoas, muitas até vinham do exílio, que não só eram mais cultas e capazes de desempenhar as suas funções como acreditavam que eram capazes de mobilizar o país. Agora o que vemos são Sócrates, Duartes Limas e estes novos seres que andam por aí, que desacreditaram a função política. As elites económicas são pequenas e más, as elites políticas são corruptas e analfabetas, e as elites sociais são muito reduzidas e julgam que ainda vivem no século XVIII, que existem condes e marqueses.
A última vez que a entrevistei António Costa tinha assumido a liderança do PS, não o conhecia bem. Hoje, é primeiro-ministro de Portugal. Já consegue avaliá-lo?
Ainda não o conheço muito bem. Ele tem andado a dar saltinhos, a remendar coisas. Não tenho uma noção do que ele quer para Portugal, para o meu país. Tem tido maior capacidade de negociar com os outros dois parceiros da esquerda do que eu imaginava, julguei que se ia estampar passados uns meses. Não me entusiasma, mas também não me desilude, no sentido em que não tive ilusões. Apesar de tudo, penso que Passos Coelho está sonâmbulo e isso faz Costa parecer ter imensa energia.
É isso mesmo que sinto: tenho à minha frente um medonho muro, como dizia Cesário Verde
Em relação à sua doença, sobre a qual sei que não quer falar muito, isso fê-la pensar em termos de fim de vida e de concretização de objectivos?
De fim de vida sim… Quer dizer, eu sempre soube que não era imortal [riso]. Mas uma coisa é saber teoricamente, outra coisa é saber na prática. Gosto muito do Cesário Verde e ele fala na morte, a propósito da morte do irmão, como um «medonho muro», e é isso mesmo que eu sinto: tenho à minha frente um medonho muro. Eu sei que o meu cancro é incurável, não sei qual é a esperança de vida. No dia 1 de Outubro vinha um artigo no «New York Times» de um grande jornalista americano que dizia que tinha o mesmo tipo de cancro que eu tenho, há dois anos, como eu, da minha idade, e que o médico lhe tinha dado três anos de esperança de vida. Fiquei assim em pânico e perguntei ao meu médico, que me explicou que cada caso é um caso, aquelas coisas. Não tento estabelecer objectivos, tento, tanto quanto possível, fazer a vida tal qual como antes. De certa maneira — isto é ridículo — isso acaba por também trazer alguns benefícios: estou muito mais em casa, não faço coisas que não me apetece, na parte social praticamente só vejo os meus filhos e os meus netos, o que entristece os meus amigos e alguns colegas, mas é como o médico me disse desde o princípio e acho que é razoável: uma pessoa que tem uma doença muito grave deve pensar em si — o que é esquisito porque eu sou egocêntrica mas não sou nada egoísta — e é isso que eu tento fazer. Claro que às vezes é difícil. Fisicamente julguei que era piegas, mas não sou. Tento escrever, nunca pensei escrever um livro num ano e consegui. Parei a quimio há um mês e o médico diz que posso viajar, mas tenho o pânico de precisar do hospital e prefiro estar em Lisboa. Uma das coisas que me custam é a dependência, não posso andar sozinha na rua, não posso guiar, mas tenho de aceitar.
Sei que valoriza o tédio, mas é uma pessoa solitária, sempre foi?
Sou um bocado. Entre os 15 e os 19 devo ter tido 1500 namorados e ido a 30 mil festas, era completamente sociável e achava divertido ter os rapazes todos aos meus pés. Depois tive uma fase muito dura que foi um casamento em que eu trabalhava e o meu marido estava na tropa, portanto ele era soldado raso, eu é que sustentava a casa, e depois em Oxford não era muito solitária, mas tornei-me coma idade, ou se calhar mais selectiva nos amigos, não sei. Não tenho paciência para conversa social. Se tenho de ir a um jantar porto-me pessimamente, primeiro porque gosto imenso de vodka — estou proibida, agora o médico diz que posso beber um bocadinho de vinho tinto: não gosto, não pode ser vodka? "Vodka?!", diz ele escandalizado com a ideia de eu fazer quimioterapia e beber vodka durante dois anos —, depois porque se me chateio só digo disparates e então é melhor estar sossegada. Mas não me custa nada a solidão, em parte porque sou casada e tenho o António [Barreto], tenho os meus filhos. Se não tivesse era outra coisa. A minha solidão foi chegando gradualmente, por opção, e repare que tive namoro com o António 17 anos e ainda hoje mantemos duas casas, embora a outra seja o escritório dele.
Há alguma coisa que gostasse de ter feito e não tenha feito até hoje?
Ter tocado um instrumento. Antes de ir para Oxford, como se tivesse pouco que fazer — trabalhava das 9h às 17h, com relógio de ponto, no Ministério da Saúde, metia-me no eléctrico, ia para casa, dava banho aos miúdos, aquelas coisas, e ainda tinha a faculdade. Aos 25 anos decidi ir tocar violoncelo e inscrevi-me na Academia dos Amadores de Música e foi passado um ou dois anos que tive a bolsa da Gulbenkian para ir para Oxford. E não tinha ouvido nenhum, zero. Gosto imenso de música mas o professor disse-me que eu era patética porque era incapaz de reconhecer o que quer que fosse embora me esforçasse imenso. Mas eu gostava tanto… O prazer da música não derivava de ser capaz de tocar um instrumento. Mas é um pormenor, porque penso que sou uma privilegiada.
O seu diário deixou-me curiosa. Como foi redescobrir-se?
Não reli mais o diário de miúda. Tenho a parte do diário da adolescência, que vai dos 14 ou dos 15 aos 19, depois tenho muita correspondência, de quando estive em Londres em 1962 e depois de quando fui para Oxford, em 1970, curiosamente guardei-a, e depois tenho um diário de seis anos que tem o Alzheimer da minha mãe e esse não li mesmo, é capaz de ser o mais trágico. E nestes dois anos em que estive doente voltei a fazer um diário, mas só fiz um ano. E outro dia estava a pensar, eu devo ser maluca, fiz o diário desde o dia em que foi diagnosticado o cancro até ao dia em que lancei o livro "A Minha Europa". Pensei, agora vais morrer. Mas no dia a seguir não morri e então escrevi outro.
Um dia os seus filhos ler os diários. Vão encontrar alguma coisa do género “As Pontes de Madison County”?
Quando escrevi o Bilhete de Identidade [livro de memórias], as únicas duas pessoas com que me preocupei que se chocassem com alguma coisa, nomeadamente de cariz sexual, foi com os meus filhos, especialmente tendo eu um rapaz. Acho que a minha filha nunca se chocaria. Mas eu fiz um bicho de sete cabeças, que é uma das minhas especialidades. O meu filho, que viveu em Inglaterra e tinha lido várias memórias e diários, quando leu, disse: "A mãe está a brincar comigo? Pensei que a mãe tinha tido uma vida muito mais aventurosa, aquilo é uma coisa um bocado insonsa". Portanto, não ficaram chocados.
Qual é a pior pobreza?
Penso que a de espírito. A limitação de espírito, a falta de imaginação, a falta de capacidade de analisar o mundo, é mais dramática do que a falta de dinheiro. Não ter dinheiro comprar o que comer é horrível. A partir desse patamar, penso que é a pobreza de espírito.
O que não perdoa?
A hipocrisia.
Qual o seu maior defeito?
A ansiedade.
Para fazer uma brincadeira com os dois livros anteriores a este: quem mandaria de volta para “A Sala de Aula”?
José Sócrates.
E a quem mandaria fazer uma viagem e para onde?
Ao seu amigo professor Domingos Farinho, para Abu Dhabi.
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