Hoje “custou-me muito ver a luz do dia. Mas eu fui mineiro 20 anos, para a minha mulher foi pior, ainda lhe custa ver bem as coisas”, diz à Lusa, na Igreja Central Baptista de Dnipro, o primeiro ponto de chegada da viagem depois do “inferno de um mês”.

De barrete escuro, roupa escura e barba branca escurecida pela fuligem, Ivan Ovna, 66 anos, é a face derrotada dos civis que fogem da guerra. “Só ouvia explosões, bombas, tiros. A minha casa, que construí com as minhas mãos depois de me reformar, já não existe”, desabafa em russo, falando rápido como se tentasse descrever a violência que viveu.

“Em 2014, tive tiros ao pé e fiquei com medo. Mas agora foi a destruição completa. Não resta nada, só paredes, sem telhado e a cave”, explica Ivan, acompanhado da mulher, na sala de refeições da igreja.

De barrete castanho e casacão azul escuro, Natália sussurra ao marido algo impercetível e Ivan tenta explicar. “Até o micro-ondas explodiram”, diz, como que pedindo para ficar escrito na notícia.

O casal não tinha muita fome. “Tínhamos muita comida, não havia problema. O problema era o barulho contínuo”, explica.

Hoje decidiram arriscar. Souberam que existia um autocarro ao meio-dia numa esquina perto e foram ver. “Vimos, entrámos e não dissemos nada. Trouxe só o coelho para não ficar sozinho lá”, explica Ivan, o único que fala à Lusa.

Quem conduzia o autocarro, uma carrinha com mais pessoas que lugares, era Sergii, antigo motorista escolar que dia sim, dia não, arrisca uma viagem de 900 quilómetros entre Dnipro e Sievierodonetsk e regresso, que dura 18 horas.

“É um bocado perigoso. Hoje caiu uma bomba à frente e partiu o farol. Mas de resto não houve problema”, explica o motorista, magro e com ar cansado.

Enquanto Sergii fala à Lusa, uma senhora gorda, com um vestido que parecia de gala, abraça-o e insiste em elogiá-lo.

“Este homem merece um monumento. É o nosso salvador. Nós estaríamos mortos”, diz a mulher.

Sergii já esteve em Mariupol e em Bergyansk. “Desde que consigamos passar, vamos tentando”, mas só através do lado ucraniano. “Não vou para a parte russa, não confio”, diz.

A carrinha foi fornecida à organização por Dima, 27 anos, e outro dos motoristas. “O problema é arranjar motoristas que tenham coragem. Temos dois autocarros que fazem todos os dias este caminho”.

“Temos de salvar esta gente. Não podemos ficar quietos”, explica. Os refugiados tomam banho, comem e recebem algumas roupas novas. Depois são encaminhadas para o oeste da Ucrânia ou para fora do país.

Hoje, Kiev proibiu a circulação em corredores humanitários partilhados com a Rússia, mas esse não é o caso do autocarro de Sergii. Por isso amanhã, a carrinha voltará a partir com outro motorista.

Sievierodonetsk, junto a Luhansk, é uma zona fortemente bombardeada pelas tropas russas a partir de Donbass (zona controlada por independentistas apoiados por Moscovo).

Hoje, no dia em que saiu de casa, Ivan não quer voltar. “Já lá não tenho nada, para quê?”.

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