“A seca afeta fundamentalmente as culturas em regime de sequeiro. No entanto, as culturas de regadio não saem incólumes deste acidente climático”, disse, em resposta à Lusa, o professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA) João Paulo de Melo e Abreu.

De acordo com o especialista em agrometeorologia, a precipitação média dos primeiros três meses do ano ronda os 200 milímetros (mm), porém, este ano, ficou em metade.

“Como cada mm de água usada na evapotranspiração gera, aproximadamente, 13 quilos de grão por hectare, as perdas de produção que se verificam são cerca de 1.300 quilos de grão por hectare [kg/ha]. Ora, um solo espesso de barro que produzisse 4.000 kg/ha num ano normal ficará com uma produção que ronda os 2.700 kg/ha”, exemplificou.

João Paulo de Melo e Abreu referiu ainda que o aumento da temperatura “acelera a taxa de aparecimento das fases das plantas” e pode fazer com que algumas espécies que necessitam de frio para florirem deixem de fazê-lo, pelo menos, em alguns anos.

“Quando uma planta tem um ciclo vegetativo mais curto, interceta menos radiação e produz menos. Por outro lado, plantas que não satisfazem as suas necessidades de frio têm florações anormais e produzem poucos frutos […]. O aumento da temperatura reduz a assimilação das plantas, a qualidade e pode conduzir à ocorrência do escaldão dos frutos", afirmou.

Na sequência destas alterações há o “risco” de Portugal deixar de conseguir algumas espécies, no entanto, “também existe a oportunidade de implantar outras culturas”.

“No futuro mais próximo, parece-me que os maiores problemas terão a ver com a qualidade de algumas produções […]. Parece-me que temos ferramentas básicas para fazer a necessária adaptação. O conhecimento que nos falta, em Portugal, deveria ser adquirido com maior celeridade. Por exemplo, dever-se-ia obrigar as empresas que vendessem material vegetal a apresentarem parâmetros essenciais para possibilitar uma gestão mais técnica na agricultura”, apontou.

Por sua vez, o também docente do ISA Francisco Gomes da Silva notou que, numa perspetiva de longo prazo, o desafio provocado pelas alterações climáticas é maior.

“As consequências dos cenários de alterações climáticas estudados (nomeadamente para a Península Ibérica e especificamente para Portugal) apontam para a ‘deslocalização’ de algumas espécies vegetais (migrando de sul para norte), para a adaptação das tecnologias utilizadas para as cultivar, com especial ênfase para a imprescindibilidade de conseguirmos dotar o território nacional da capacidade de armazenamento de água proveniente da precipitação que continuará a ocorrer, embora de forma muito concentrada”, assegurou.

Segundo o professor, as alterações climáticas acarretam inevitavelmente impactos no rendimento dos agricultores de sequeiro, enquanto na agricultura de regadio, “desde que exista água armazenada nas albufeiras e/ou nas massas de água subterrânea”, as consequências são minimizadas.

Porém, em períodos de seca mais ou menos prolongada a produção de alimentação forrageira para os animais “ressente-se muito”, passando os agricultores a ter como opções, quando a seca se prolonga, a compra de silagens, fenos e palhas, a diminuição do efetivo ou tentar complementar a alimentação dos animais com recurso a mais alimentos concentrados.

A isto acrescem impactos “de ausência de água para o abeberamento dos animais”, bem como na qualidade da carne.

“Não na qualidade vista como distinção entre ‘carne boa’ e ‘carne má’ (que faça mal à saúde), pois a legislação europeia é muito exigente em relação à qualidade dos alimentos concentrados para animais, mas as características da carne podem alterar-se ligeiramente, embora seja muito duvidoso que o consumidor sinta essas variações”, vincou.

Por outro lado, este fenómeno pode também ter reflexo nas importações, sobretudo nos produtos para os quais Portugal é, à partida, um país importador.

Já para “os grupos de produtos em que somos exportadores líquidos, o efeito será mais no volume e valor das exportações”, sendo esta uma das razões para que Portugal aposte “de forma clara em adequar o seu território em termos de armazenamento de água para rega”, disse.

Os impactos no preço dos produtos para o consumidor final “tenderão a ser sempre muito marginais”, com principal destaque para os frescos, caso exista um reflexo nos volumes produzidos.

Para Francisco Gomes da Silva, os impactos das alterações climáticas na agricultura e no rendimento dos agricultores exigem uma política “muito séria” concentrada em questões como o aumento da capacidade de armazenamento de água, o aumento da ligação em rede entre diversas albufeiras, bem como a capacidade de criar infraestruturas de distribuição eficiente de água.

“O regadio é um fator de coesão territorial. Portugal tem (e terá) água suficiente, mas tem que apostar em políticas centradas no seu armazenamento e distribuição. Enterrar a cabeça na areia e pensar que resolvemos este problema ‘não utilizando água’ é pura perda de tempo”, concluiu.

Desafio é produzir mais com menos e em condições mais desfavoráveis 

A agricultura, além de sofrer com as alterações climáticas, também contribui para este fenómeno, sendo que o maior desafio que o setor vai enfrentar é “produzir mais com menos”, disse à Lusa a professora Cláudia Cordovil.

“A agricultura, como os outros setores, também contribui para as próprias alterações climáticas. A mobilização do solo, o uso de combustíveis fósseis e a decomposição da matéria orgânica do solo contribuem para a emissão de CO2 [dióxido de carbono] que promove o efeito de estufa”, indicou, em resposta à Lusa, a docente do Instituto Superior de Agronomia (ISA) Cláudia Cordovil.

De acordo com a especialista, este composto químico, por sua vez, promove o aumento da temperatura média, sobretudo nas regiões mais áridas.

A alteração do uso do solo, a desflorestação, os fogos e más práticas de gestão do solo “têm contribuído para a degradação da sua qualidade, nomeadamente com o aumento da erosão que, por sua vez, aumenta a emissão do CO2 e os impactos associados”.

Cláudia Cordovil notou ainda que, “em virtude da alteração e incerteza dos padrões climáticos com o aumento da temperatura média e a diminuição da precipitação total e a ocorrência de episódios erráticos de precipitação, todo o paradigma da produção agrícola terá que ser alterado para permitir continuar a produzir”.

O grande desafio vai passar assim a ser “produzir mais, com menos recursos e em condições mais desfavoráveis, diminuindo simultaneamente os gases com efeito de estufa”.

A produção agrícola tem assim que se adaptar para “ultrapassar as pressões e reduzir a pegada de carbono medida através da emissão direta de gases para a atmosfera que dão origem às alterações climáticas.

Segundo a professora do ISA, para atingir o objetivo apontado existem duas estratégias diferentes com o mesmo propósito: a adaptação e a mitigação.

Enquanto a mitigação constitui ações “que visam reduzir as perdas e, portanto, os fatores que originam as alterações climáticas”, a adaptação é “o ajustamento para criar condições mais favoráveis e económicas, através da alteração ou modificação dos processos para permitir adaptar às novas condições”.

Para a especialista, a adaptação “é um caminho a seguir”, tendo em conta que o progresso na redução das emissões globais “é mais reduzido do que desejável, as emissões de CO2 aumentam rapidamente, mas de uma forma não linear, a temperatura continua a aumentar e a precipitação é cada vez mais errática”.

A adaptação da agricultura às alterações climáticas prevê ainda “fazer face à vulnerabilidade das culturas, à variação dos parâmetros climáticos, reduzir a sensibilidade dos sistemas agrícola e aumentar a resiliência dos mesmos".

Cláudia Cordovil indicou também que as melhores ferramentas para se atingir um nível satisfatório de adaptação passam pela mudança da gestão das culturas, uma nova calendarização de operações, novos métodos de rega, aumento da eficiência dos nutrientes aplicados via fertilizantes, uma estratégia de sequestro de carbono, o uso de resíduos orgânicos para fertilizar as culturas e melhorar as características do solo.

Por outro lado, é igualmente importante “a criação de novas variedades mais resilientes, de variedades com capacidade de associações simbióticas que permitam a absorção de nutrientes e resistir a situações de toxicidade”.

Estratégia para reutilizar água confronta escassez com necessidades de consumo

As últimas quatro décadas foram as mais quentes desde 1931, com a precipitação a diminuir cerca de 20 milímetros por década, segundo dados que enquadram a estratégia de reutilização da água apresentada pelo Governo.

No documento “Água para Reutilização – Usos não Potáveis”, apresentado a 22 de março numa conferência em Lisboa, o cenário traçado começa por sublinhar que dos 10 anos mais secos, oito foram depois de 1990.

Em fevereiro de 2019 observou-se a temperatura máxima mais elevada, desde 1931, face ao mesmo período de anos anteriores (anomalia de +2,41 graus Celsius).

O mapa das disponibilidades versus necessidades mostra uma menor reposição dos volumes de água armazenados, quer nas albufeiras, quer nas águas subterrâneas, contra maiores consumos, tanto nos meios urbanos, como na agricultura.

Perspetiva-se o crescimento do turismo e das necessidades de regadio, bem como a extensão do período do ano com necessidade de rega.

O objetivo a atingir, a nível nacional, é reutilizar a água tratada nas ETAR; pelo menos 20% até 2030, já que, como disse no encontro o ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, a água que existe no planeta não vai aumentar.

Estão em causa caudais provenientes das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) que processam atualmente mais de dois milhões de metros cúbicos por ano, em 52 instalações, da responsabilidade de 20 entidades gestoras, de acordo com dados divulgados em janeiro pela tutela.

A água “reciclada” pode ser usada para regar jardins, lavar ruas e contentores, refrigeração industrial ou rega, com diferentes níveis de tratamento, poupando assim a água da rede pública destinada ao consumo humano.

De acordo com o documento publicado na página da Agência Portuguesa do Ambiente, comparada com outras origens alternativas, como a dessalinização, a transferência de água ou construção de novas barragens, a reutilização “pode implicar menores custos de investimento e energia”, contribuindo para “reduzir as emissões de gases com efeito de estufa”.

Para dar corpo à estratégia, está em preparação legislação que acautele o licenciamento para trabalhar nesta área, regulamentos para que edifícios novos ou reabilitados tenham duas redes de água, a comum e outra de águas tratadas para a casa de banho, e também um guia de análise do risco.

Dados divulgados pelo Governo este ano, revelaram que nas descargas das sanitas portuguesas se gasta um quarto do total da água. As novas medidas serão testadas através de planos de ação em alguns pontos do país, que vão definir as zonas de cada município onde as novas construções terão de ter as duas redes.

Lisboa, Loures e Mafra são exemplo de municípios que já usam água tratada para lavagem e rega de espaços públicos.

Em março, o ministro do Ambiente e da Transição Energética anunciou que é objetivo do governo aprovar, em junho, um decreto-lei que obriga as 50 maiores ETAR do país a aproveitarem 10% dos efluentes tratados para rega, lavagem de ruas ou usos industriais, num prazo de cinco anos.

As previsões do Programa das Nações Unidas para o Ambiente indicam que a procura de água irá exceder os recursos viáveis em 40% até 2030.

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