"É um sentimento de tristeza, de um vazio de jovens e de todas as pessoas que estão ligadas ao Carnaval, não sei nem explicar", começou por desabafar à agência Lusa o presidente do grupo Vindos d´África, José Gomes, do Bairro Craveiro Lopes, o vencedor dos últimos seis desfiles realizados na Praia, tendo o último sido em 2020.

E em 2021 e 2022, a festa do 'Rei Mono' não vai para as ruas de Cabo Verde, por causa da pandemia do novo coronavírus, e o sentimento de tristeza do grupo, fundado em 1986, estende-se a praticamente toda a comunidade local, que vive intensamente o Carnaval.

Prova disso, deu conta o presidente, é que o grupo estava a ensaiar com alguns elementos desde agosto de 2021, na esperança de que este ano iria haver desfile, mas o aumento do número de casos de covid-19 a partir de finais de dezembro levou o Governo a suspender as atividades em todo o país.

Os ensaios, com dança, teatro, música e confeção das peças, decorriam na sede, localizada no antigo centro de saúde do bairro, transformado agora num museu, com um pouco da história de Vindos d'África, mas também é ponto de encontro local.

"Nós já estávamos a preparar, pensando que as coisas iam melhor, mas neste momento há sinais claros que tendem a piorar", reconheceu o presidente deste que é o único grupo que desde o seu nascimento todos os anos desfilou na capital cabo-verdiana, até estas duas paragens forçadas.

Mesmo concordando com a medida, dizendo que "a saúde está em primeiro lugar", José Gomes criticou "uma certa incoerência" do Governo, lembrando que nas eleições -- autárquicas (outubro 2020), legislativas (abril de 2021) e presidenciais (outubro de 2021) -- fez-se campanha "por tudo quanto é lado".

"Havia menos pessoas vacinadas, a pandemia estava a crescer, e não houve essas restrições e essas medidas. Há uma certa incoerência em determinadas medidas, e o Carnaval está sempre a ser penalizado", lamentou o mesmo responsável.

E sem Carnaval, o Bairro Craveiro Lopes não é a mesma coisa. "Há um vazio total", suspirou o dirigente, referindo que por esta altura a localidade regista um movimento fora do normal, recebendo crianças, jovens e adultos de outras zonas para ensaiar com o grupo, que costuma levar entre 500 e 600 figurantes para a avenida.

"Sem Carnaval, o nosso bairro é um bairro praticamente morto", prosseguiu, dando conta que o frenesim do ponto alto dos ensaios, que prolonga por dois a três meses antes dos desfiles, gera também pequenos negócios e envolve as famílias.

O Carnaval mais emblemático de Cabo Verde é em São Vicente, mas o presidente do Vindos d'África admitiu que a festa na Praia já estava a crescer, após a Câmara Municipal ter feito investimentos, como ampliação do sambódromo, compra de bancadas e um novo sistema de som e dado formação aos grupos.

Mas com dois anos sem brincar ao Carnaval, o responsável associativo não tem dúvidas que vai levar a um retrocesso desta manifestação cultural na capital do país, que considerou não ser derivado apenas à covid-19, mas também à "ausência total de informação e de comunicação" das entidades, locais e governamentais.

"Com a pandemia ninguém falou mais em Carnaval, ninguém falou com os dirigentes", protestou, recordando que há dois meses que os grupos pediram uma audiência com o presidente da Câmara Municipal da Praia e com ministro da Cultura, mas ainda sem resposta.

"Isso já não é pandemia, já é um desleixo, um despropósito para com os grupos da capital", prosseguiu, garantindo que o grupo vai readaptar-se, para ter um bom Carnaval em 2023.

Em 2020, além do Vindos d'África, que se sagrou hexacampeão, o Carnaval da Praia teve desfiles de outros seis grupos oficiais, nomeadamente Maravilhas do Infinito, Sambajó, Vindo do Mar, Bloco Afro Abel Djassi, Estrelas da Marinha e Deusa do Amor.

Mesmo com a suspensão de todas as atividades este ano, o Governo cabo-verdiano vai manter o financiamento de 10 milhões de escudos (90 mil euros) aos projetos apresentados pelos grupos, algo que José Gomes saudou, esperando "alguma fatia" para os conjuntos oficiais da Praia.

Na Avenida Cidade de Lisboa, zona baixa da Praia, o ano todo é um autêntico mercado a céu aberto, com todo o tipo de negócios, desde roupas, frutas, verduras e legumes, e zona de confluência para todos os bairros da capital do país.

Por altura do Carnaval é ponto de encontro da Praia, e continua também a ser palco para muitos e bons negócios, como é o caso de Maria Isabel, mais conhecida por Raulanda, vendedora de verduras, que tem aproveitado os desfiles para todos os anos vender 20 litros de mancarra torrada que manda trazer da sua ilha natal, o Fogo.

Mas o negócio volta a ficar parado, pelo segundo ano seguido. "Pensei que este ano já ia haver Carnaval, para vir bonita e ficar feliz", lamentou a vendedora, que, além de ser a "senhora da mancarra", faz sucesso por estar sempre trajada a rigor, e ainda tem tempo para sambar um pouco, confundindo-se mesmo com os figurantes dos grupos.

Mesmo perdendo o negócio lucrativo em apenas um dia, Raulanda concorda com a medida do Governo, tal como Pedro Tavares Varela, 64 anos, que perdeu a conta aos desfiles a que já assistiu na Praia, mas entende que nesta altura deve-se priorizar a saúde pública.

"Acho que é uma boa decisão. Eu gostaria que os jovens se protegessem, ganhassem mais saúde, tal como eu", apelou o sexagenário, morador do bairro da Várzea, onde todos os desfiles terminam.

O Governo justificou a decisão de suspender as atividades do Carnaval, este ano na terça-feira de 01 de março, com o aumento exponencial dos casos registados desde o final de 2021, acima de mil casos em vários dias, justificados pela variante Ómicron, que já está a circular no arquipélago.

Dezenas de grupos e centenas de foliões desfilaram pela última vez no Carnaval de 2020 em Cabo Verde, precisamente a última grande festa popular de rua realizada no país antes da covid-19, cujo primeiro caso foi registado em 19 de março desse mesmo ano, na ilha da Boa Vista.

RIPE // VM

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