A chegada do NewSpace e o impulso dos privados

Esse esforço da atividade espacial privada culmina na histórica lei Commercial Space Launch Act de 1984, que vem resumidamente facilitar ou liberalizar os lançamentos espaciais comerciais ou privados, permitindo o acesso a todos.

Os anos 90 ou período pós-soviético, vieram trazer ao mundo parcerias "irregulares", compostas pelos anteriores adversários da Guerra Fria, no que diz respeito aos serviços de lançamento espacial, como foi o caso da International Launch Services (Lockheed-Khrunichev-Energia), da Sea Launch (Boeing-Zenit), da MirCorp (MIR-Soyuz-Progress), etc.

O impulso dos privados para o Espaço veio com Peter Diamandis, que, presidindo à X Prize Foundation, lançou dois concursos/corridas exigindo 90% de iniciativa privada na sua conceção, como foi o caso do Ansari X Prize (lançar uma nave espacial tripulada reutilizável no Espaço, duas vezes no período de duas semanas), e do Lunar X Prize (colocar um rover na Lua e realizar algumas tarefas adicionais na superfície lunar). Estas corridas lançaram sementes nas equipas dos privados, cujo frutos continuam a ser colhidos hoje.

Também o ano 2000 viu aparecer Elon Musk, com a ambição consistente de colonizar Marte. Contudo, os eventos que marcaram o NewSpace foram, a 23 de novembro de 2015, quando a Blue Origin demonstrou com sucesso a reutilização repetida de um foguetão pela primeira vez, completando cinco voos suborbitais de descolagem e aterrissagem vertical (VTOL), com o New Shepard; e quando, a 30 de março de 2017, a SpaceX relançou com sucesso o foguetão orbital de primeira classe, o Falcon 9, cuja importância económica é indiscutível, tendo por isso sido comparado ao primeiro voo do Boeing 707, que inaugurou a era dos jatos comerciais.

O NewSpace afirmou-se assim como a versão do capitalismo aerospacial, para além da influência das nações. Uniram-se esforços, olhou-se para o futuro e os preços desceram. É por isso hoje em dia temos no site RocketBuilder, da United Launch Alliance, veículos de lançamento espacial (foguetões) de milhões de dólares para consulta online, para se configurar uma missão privada — é que cada vez é mais barato configurar uma missão privada.

Porque surgiram entretanto as "Space Forces"?

Em dezembro de 2017 o General Hyten, Chefe do US Strategic Command (STRATCOM), numa audiência no Reagan National Defense Fórum em Simi Valley, na California, referiu que desde 1991 que a Rússia e a China viram como as Forças Armadas dos EUA fizeram uma utilização muito bem-sucedida dos satélites em operações militares, como na Guerra do Golfo, e por essa razão estariam agora à procura de  maneiras de negar aos EUA e aos seus aliados a capacidade de usar satélites em conflitos futuros.

Esta "negação" seria levada a cabo pela reutilização de satélites "desativados" onde se instalariam armas laser capazes de destruir os satélites dos Aliados, provocando o caos na economia ocidental, por exemplo através da inutilização dos transportes por não disporem de sinal GPS.

Por estas e outras razões (como a defesa contra o impacto de asteróides), os Estados Unidos da América começaram a formar uma Space Force, um ramo autónomo das Forças Armadas norte-americanas. Como seria de esperar, houve um coro de críticas acusando o Presidente Trump de querer transformar o Espaço num domínio de Guerra. Contudo o "tiro" é muito ao lado...

Já existe um Space Command inserido no Strategic Command dos EUA desde 1985. Aquilo que se discute agora é apenas dar-lhe autonomia antes de 2020... E também na Rússia existe a Força Espacial Russa, formada em 1992 e que em 2015 assumiu a designação atual de Força Aerospacial Russa. Resumindo, estas forças já existem nas grandes potências e apenas estão a sofrer uma readaptação às novas realidades, como por exemplo às ASAT's (armas terrestres anti-satélite).

O aparecimento das ASAT's criou as Space Forces (ramos autónomos das Forças Armadas, vocacionados para o Espaço), que por sua vez estão a forçar uma gold rush no Espaço (corrida aos recursos espaciais).

Esta preocupação apareceu quando a 11 de janeiro de 2007, às 15:00, a China, sem pré-aviso, lançou a partir do Centro de Lançamento de Satélites Xichang, um míssil que, voando até aos 800 km de altitude (a Estação Espacial Internacional está a 550 km de altitude), destruiu um satélite chinês desativado. Era o primeiro teste de uma arma terrestre anti-satélite precisa — uma vez que o satélite se deslocava a 27.000 km/h na órbita da Terra.

Este teste deixou no Espaço 3000 pedaços que voam em órbita (ainda hoje, e que podem ser monitorizados por radar), em ambiente de micro-gravidade e à velocidade superior à de uma bala, podendo destruir outros satélites ou foguetões se os encontrar no seu caminho.

Também a 20 de fevereiro de 2008 os EUA foram obrigados a neutralizar um dos seus satélites espiões, porque este se avariou e poderia precipitar-se na Terra com materiais radioativos.

Em março deste ano o Primeiro-ministro indiano Narendra Modi anunciou o sucesso da missão Shakti, que foi um teste de uma arma anti-satélite terrestre (ASAT) contra um satélite em órbita baixa da Terra (a uma altitude de 300 km). O teste foi bem sucedido e atingiu o seu alvo apenas 3 minutos após o lançamento, destruindo-o.

O Espaço passou a ser um domínio de Guerra...

Portanto não é de estranhar quando às grandes potências mundiais se começam a juntar os fortes países europeus, como a França. Dias antes das comemorações da tomada da Bastilha, a 14 de julho de 2019, o Presidente Macron anunciou que em setembro deste ano seria criado a Força Aérea e Espacial. Segundo o Breaking Defense, o país planeia gastar 3,6 mil milhões de euros entre hoje e 2025, armando satélites com "armas e laser". Já em dezembro de 2018 a França tinha lançado um novo satélite de reconhecimento militar, o CS0-1, que seria o primeiro de vários a ser lançado para o Espaço.

Simplifiquemos: utilizando uma linguagem militar de princípios do século XX, por altura da Primeira Guerra Mundial, aquilo que está a acontecer é o "entrincheiramento", desta feita de tipo espacial - as Space Forces vão "tomando posições" pelo controlo da órbita terrestre, para defesa das comunicações.

Desta vez é a sério: Preparamo-nos para um equilíbrio de Guerra Fria ou de Guerra Fria nas Estrelas. Mas com uma agravante: Durante a Guerra Fria, em episódios como a "Invasão da Baía dos Porcos" ou durante a "Crise dos mísseis de Cuba" o armamento e as comunicações não podiam ser "hackeados", e agora podem. E podem ser hackeados [pirateados] por nações (veja-se o escândalo das eleições norte-americanas) ou hackeados por grupos de "black top hackers", cujas motivações não são claras.

Milhares de satélites, milhares de alvos para hackers...

De acordo com o unoosa.org (United Nations Register of Objects Launched into Outer Space) temos presentemente 4987 satélites a orbitar o planeta (dos registados pela UNOOSA) dos 8378 que já lançámos na história da exploração espacial. Este número vai continuar a crescer: por exemplo a 9 de agosto de 2018 o governo do Reino Unido assumiu que até 2030 pretende lançar 2000 satélites.

De momento só 1957 satélites continuam ativos, sendo que os restantes estão desativados. Dos ativados, 848 são de utilização comercial, 540 de utilização governamental, 422 de uso militar e 147 de utilização civil.

Agora vamos baralhar os dados: o Starlink de Elon Musk quer lançar 12.000 satélites para fornecer Internet em qualquer local do mundo. A Amazon quer lançar 3000 satélites para a sua própria rede. O Facebook está já a trabalhar na sua própria rede de satélites para fornecer Internet. A OneWeb também quer a sua rede. O Masayoshi Son’s SoftBank Group também. A Viasat e a EchoStar’s Hughes Network Systems também. A lista continua...

Assim sendo, mesmo que em altitudes diferentes, os satélites que orbitam a Terra (ainda que o Espaço seja muito grande) terão uma proximidade relativa... Satélites militares estarão misturados com satélites de Ciência, que por sua vez estarão "misturados" no futuro com satélites dos privados. E misturados porque os satélites são feitos para comunicar com a Terra e entre eles, e isso é um vulnerabilidade do ponto de vista do hacking espacial.

Hackeando satélites...

Regra geral os satélites são seguros, mesmo os desativados. Isto porque são continuamente monitorizados até que sejam desorbitados ou enviados para órbitas cemitério, onde o combustível restante é libertado e todos os sistemas tecnológicos são desligados. Além disso, as chaves de autenticação estão no hardware, além de que os satélites recebem numa frequência e emitem noutra, e será preciso esse hardware para estabelecer o uplink e downlink.

Mas depois há o problema dos satélites geoestacionários, com os quais é possível manter comunicação a todo o momento. Estes normalmente estão sujeitos aos protocolos dos centros de comando e controle, que contudo são criptografados e têm mecanismos de autenticação. Mas tudo é pirateável e muitos deles nem sequer têm autenticação GPS do sinal do uplink ou sinal de contacto.

E depois há os satélites "NewSpace" (como os pequenos CubeSats) ou seja, o mais baratos possível, que por vezes não usam criptografia de dados. E na Terra estamos no advento das antenas de alta potência a preços reduzidos, por forma a melhorar as próprias comunicações da Terra.

Por isso a PCMag escreveu um artigo recente sobre como começa a ser simples o hacking de satélites. Nesse artigo é relatado como o vice-presidente de Estratégias de Infraestrutura da Trend Micro (empresa de proteção contra códigos maliciosos em desktops e servidores), Bill Malik, explicou numa conferência da Agência Espacial Russa que a facilidade com que se pode hackear um satélite é surpreendente.

Explicou Malik que, por exemplo, um invasor pode aceder aos sistemas do Telescópio Hubble e abrir a porta da câmara o enquanto o aponta para o sol, destruindo a ótica sensível, e causando um dano de milhões. No vídeo seguinte está parte dessa conferência.

Nessa conferência Malik explicou que entre os ataques mais conhecidos à NASA, uma parte substancial está dirigida aos satélites. E o sequestro de um satélite pode ser feito de inúmeras maneiras, para semear o caos.

Para quem acha que este não é um problema sério dos dias de hoje, note bem que a empresa Kaspersky, talvez atualmente a maior empresa do mundo na área do combate aos vírus, hackers, spam, trojans e spyware, com sede na Rússia, anunciou que o grupo de hackers russos Turla APT, também conhecidos por Snake ou por Uroboros, se tem dedicado ao hacking de satélites comerciais.

A Kaspersky considera este grupo um dos mais perigosos de todo o mundo, sendo que tem estado em atividade nos últimos 8 anos praticamente incógnito. Este grupo foi dado a conhecer por uma investigação de fundo da Kaspersky, que também recentemente tornou pública a caracterização única do modus operandi dos Turla APT: "um grupo especialmente perigoso e difícil de apanhar, não só pela complexidade das suas ferramentas, mas também pelo extraordinariamente requintado mecanismo de comando e controle de satélites que é utilizado nas fases finais do ataque".

Em resumo: No virar do milénio vimos o que um avião pode fazer quando sequestrado por um grupo terrorista, tal com o aconteceu no 11 de Setembro... Existem grupos que se estão a dedicar agora ao sequestro de satélites, e o assunto não é menos grave.

Este é o desafio de todas as empresas emergentes que vão estar baseadas em Espaço.

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