Para Paulo, 40 anos, esta dádiva “aproximou ainda mais o que já era próximo”.
“É uma prova física de amor incondicional. Está cá, pode ver-se, temos cicatrizes…”, contou à agência Lusa, recordando “o choque” que teve quando, numa análise de rotina, lhe foi diagnosticada uma insuficiência renal crónica, já bastante avançada.
Desde 2005, quando começou a ser seguido no hospital, e principalmente a partir de 2012, quando passou a fazer diálise, que a hipótese de receber um rim transplantada era aflorada. Mas foram as consequências da diálise que levaram a que o tema fosse mais analisado.
“As consequências de uma diálise afetaram-me muito, por uma questão física. Estava preso três dias por semana, durante quatro horas. Há uma prisão, há uma limitação ao nível alimentar, uma restrição muito grande ao nível da ingestão de líquidos e teve consequências muito duras ao nível da minha produtividade, da minha energia”, recordou.
Foi nessa altura que Margarete, hoje com 39 anos, começou a abordar de uma forma mais séria a hipótese de doar um rim ao marido, coisa de que ele nem sequer queria ouvir falar.
“No início era algo que não conseguia falar muito e nem concebia como opção. Não queria que ela abdicasse de um órgão, pusesse em risco a sua própria saúde por mim. Não é uma coisa que se aceite de ânimo leve”, afirmou.
Mas o pior dos cenários exigiu uma decisão, já que havia o risco de uma falência renal total, ao ponto dos rins deixarem de funcionar o mínimo indispensável para limpar o sangue.
Para Margarete, nunca existiram dúvidas: “Nunca desisti. Pensava muitas vezes que seria muito complicado se me dissessem que não podia avançar, aí sim teria alguma dificuldade em lidar com essa situação. Nunca tive dúvidas ou vacilei nessa decisão”.
Por esta razão, Margarete considera que antes da lei que permitiu a dádiva em vida de órgãos entre pessoas sem relação consanguínea, que entrou em vigor em 2007, devia ser “muito frustrante haver uma possibilidade, um caminho e não se poder aproveitar”.
O processo de doação durou cerca de um ano, período durante o qual foram avaliadas as condições clínicas, mas também averiguada a veracidade deste ato altruísta.
O dia da cirurgia estava marcado para 05 dezembro de 2012. Na véspera, e como estava a tirar a tese de mestrado, Margarete aproveitou para pôr os papéis em dia e levou-os para o quarto do hospital. “Foi bom ter outra coisa em que pensar”, disse.
À noite, a horas da intervenção, Margarete e Paulo encontraram-se num vão de escada entre pisos do hospital. “Para um último cumprimento, um último obrigado da minha parte, uma boa sorte”, recordou Paulo.
A cirurgia começou com ela e só depois de tudo estar a correr bem é que Paulo chegou ao bloco. Ao acordar, e depois de saber que tudo tinha corrido conforme o previsto, o casal viu-se pela primeira vez e, apesar da parafernália de pessoas à sua volta, puderam cumprimentar-se com um beijo.
A vida regressou entretanto ao normal. “Não sinto diferenças, a vida acabou por voltar ao normal, recuperei e não sinto diferenças. Sou seguida na consulta de dador vivo, fazemos análises para saber se está tudo bem e, se me queixo, são feitos exames complementares”, disse Margarete. Para Paulo, foi “um estender do prazo de validade”.
“Quase que foi um renascer com uma vontade e energia diferentes, obviamente sempre com uma responsabilidade inerente ao facto de ter aqui algo que me foi dado e me está a permitir ter uma vida normal e me coloca em sentido para tomar conta desta dádiva, para eu próprio estar bem e, de alguma forma, agradecer, justificar e não ter sido em vão o sacrifício que foi feito por mim”, disse.
Apesar de ter mais cuidados devido à vulnerabilidade resultante da medicação imunossupressora que toma para o órgão não ser rejeitado, Paulo voltou à sua vida profissional e de lazer.
Margarete alcançou os seus objetivos: “Não só melhorar a sua qualidade de vida, mas proporcionar-lhe oportunidades que se estivesse em diálise não poderia ter, nomeadamente ao nível profissional”.
Para Paulo, o ato de Margarete fortaleceu ainda mais o seu casamento. “Sempre tivemos uma relação muito próxima, muito íntima. Já tínhamos uma relação forte e se calhar por causa disso é que foi possível esta dádiva”.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, Aníbal Ferreira, conhece a história deste casal e não tem dúvidas que ela representa bem a possibilidade que a lei de há dez anos abriu.
“O que este enquadramento legal permite é que aumentemos o ´pool` de dadores potenciais, passando dos dadores apenas de primeiro grau e com consanguinidade”.
“Além de aumentar os dadores potenciais, esta possibilidade dá muito mais relevo às relações não apenas de sangue, pois satisfaz a vontade dos conjugues e amigos contribuírem para a melhoria da saúde de alguém que lhes é querido”, prosseguiu.
Segundo Aníbal Ferreira, “dar um rim é um dos atos de altruísmo em sociedade dos mais elevados. É por isso que faz bem ao coração”.
Em 2016 registaram-se 65 transplantes de rins provenientes de dadores vivos (62 em 2015).
Sandra Moutinho/Lusa
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