"A França vai acabar por ser liderada por uma mulher. Se não for eu, será Merkel”, disse ela. Não foi uma frase ao acaso, foi uma frase feita para se tornar o que em media se designa por soundbite: curta, de forte impacto, e potencialmente irresistível para os jornalistas. Uma frase que hoje já correu mundo e que expressa um dos medos essenciais com que Marine Le Pen agita os franceses, o da perda da independência face aos estrangeiros, sejam europeus, imigrantes de todas as origens e em particular islâmicos, e, neste caso em concreto, a estrangeira Angela Merkel, a alemã e europeia que ainda por cima defende uma política de acolhimento a refugiados. A frase é forte mas como não há explicações fáceis para coisas difíceis é melhor entender o contexto alargado do debate entre os dois candidatos à presidência francesa, Emmanuel Macron e Marine Le Pen, a que assistiram 20 milhões de franceses.
Foi um debate tenso, áspero, agressivo e sem conciliação possível entre os dois candidatos que domingo vão a votos em França nas eleições que decidem o próximo presidente do país. O que se passou no debate não é muito diferente da França fora das portas do estúdio, também ela um país tenso, áspero e agressivo, mas não sem conciliação. E esse foi um dos temas que Macron chamou para si. Ele compreende a “raiva dos nossos cidadãos”, “consegue ouvi-la e senti-la”, mas quer “reconciliar a França” porque o país “merece melhor”. São vários soundbites também, o mais forte será que a França merece melhor do que “uma pessoa horrível”, aquela que esteve durante duas horas e meia sentada à sua frente, segundo Macron.
Poucas horas depois, não é possível ter certezas absolutas sobre as consequências que a acidez - quase se poderia dizer maldade - que pairou sobre todo o debate tiveram sobre o eleitorado. Numa sondagem realizada pela Elabe para a estação BFM após o confronto televisivo, Macron foi mais convincente para 63% dos franceses. Uma maioria próxima daquela com que chegou ao debate de ontem e que apontam para cerca de 60% das intenções de voto. O que ainda não sabemos é se ontem Macron inverteu ou não uma tendência dos últimos dias que apontava para uma redução da sua vantagem sobre Marine Le Pen.
Voltando ao debate e agora recuando 15 anos. Em 2002, o pai de Marine Le Pen chegou também a uma segunda volta de eleições presidenciais, na altura tendo como opositor o republicano Jacques Chirac. Foi um primeiro sobressalto na França - e na Europa - iluminista. A extrema-direita chegava a uma segunda volta, ultrapassando socialistas e outros partidos mais moderados. Foi num mundo diferente também - certamente abalado pelo 11 de setembro de 2001, mas ainda antes de Atocha, em 2004, de Londres em 2005 e certamente muito distante de Paris de novembro de 2015. Também antes de 2003 e da cimeira dos Açores onde George W. Bush, Tony Blair e Aznar, anfitrionados por Durão Barroso, decretaram a invasão de um Iraque que escondia armas secretas.
Quinze anos depois, é outra Le Pen que se senta à mesa do debate presidencial - aliás, a primeira que chega à mesa do debate presidencial em televisão porque, há 15 anos, Chirac recusou-se debater com o pai Le Pen. Um luxo a que Macron não se poderia dar, década e meia depois. Não só porque não é Chirac, como também porque Marine Le Pen chega a esta segunda volta numa posição substancialmente mais forte do que a do pai. Se ele era um vento frio no pescoço da civilização europeia construída sobre os pilares do pós-guerra, ela tem todas as armas da tempestade. The winter is coming.
Mas regressemos ao debate áspero, tenso e agressivo. Não teve para o mundo o impacto de um debate entre Hillary Clinton e Donald Trump - até porque ninguém sabe organizar estes eventos planetários como os americanos - mas teve certamente mais do que umas rotineiras eleições francesas. Até porque o que se passa é tudo menos de rotina. Não há socialistas nem republicanos nesta segunda volta - os dois partidos ditos do “arco” da governação, à semelhança do que em Portugal se passa com PSD e PS -, há uma extrema-direita com um conjunto de votos impensável há 15 anos, a piscar o olho a uma extrema-esquerda e a uma direita republicana órfã de paladinos, e um candidato que se poderia chamar do partido do bom senso, que diz aquilo que o que sobra da Europa quer ouvir, mesmo que não inspire grandes entusiasmos aos que procuram mudanças efetivas. Macron, o socialista que se deu bem no mundo dos negócios e que montou o seu próprio movimento político, tornou-se em pouco mais de seis meses o candidato do mal menor.
Mentiras, raiva, bancos e terroristas
Ontem, Le Pen, não poupou palavras para o destruir. “É o candidato da globalização selvagem, da ‘uberização’, da precariedade, da brutalidade social, da guerra de todos contra todos, da pilhagem económica dos nossos grandes grupos, do desmembramento da França pelos grandes interesses económicos, do comunitarismo”, disse. Num dos ataques mais duros - e que menos a beneficiou, até aos olhos de alguns dos seus partidários - Le Pen procurou associar Macron ao fundamentalismo islâmico, usando como trampolim para essa acusação o apoio que recebeu da UOIF, a organização que reúne todas as organizações islâmicas em território francês. Macron, disse, está “apenas estar à espera do próximo ataque".
Disse também, em mais um soundbite, que Macron é “o candidato do fecho de tudo: fábricas, hospitais, maternidades, esquadras da polícia. Só não quer fechar as fronteiras”. Esta é a "melhor" Le Pen para o eleitorado que fez crescer a Frente Nacional de um partido de nicho aos 7,6 milhões de votantes das eleições de há duas semanas. Alguém que lhes fala do emprego, da ameaça terrorista e da perda da regalias de cidadãos franceses, da educação à segurança e à saúde. Esta é a Le Pen que foi a Amiens defender operários franceses da globalização que condena ao fecho uma fábrica que emprega 300 pessoas.
Por isso, alguns analistas defenderam que o tema da imigração - sem surpresa - poderá ter sido o que salvou Le Pen de um desaire maior. Principalmente porque num tema-chave como é a política europeia e as propostas que apresenta de saída mediante referendo, a candidata não conseguiu disfarçar com palavras a falta de ideias concretas de “como se faz” e que resultados traz aos franceses. Esse foi, ao invés, o território em que Macron terá marcado mais pontos. Recapitulando: se vencer as eleições, Marine Le Pen garante que avança com um referendo para decidir a permanência da França na União Europeia já em setembro. E aqui usou de mais um dos seus soundbites: “o euro é a moeda dos bancos. O franco é a moeda do povo”.
Macron fitou-a antes de fuzilar com outra das frases da noite: Então, e “como é que isso vai funcionar?", questiona. ”As empresas vão continuar a pagar aos fornecedores europeus em euros e pagam em francos aos trabalhadores”, continua, sendo que a estimativa é que num cenário destes os franco perca de imediato 20% do seu valor. Le Pen socorre-se dos ingleses, diz que o Brexit afinal não está a correr assim tão mal para a economia britânica, mas pressente-se a hesitação. E Macron pressentiu-a bem. Nessa altura, emerge o ex-ministro da Economia de Hollande, o homem habituado aos números e aos dossiers, que recorda à sua adversária que Inglaterra nunca teve no euro e que está a comparar realidades não comparáveis.
Acusações e palavras fortes - mais próximas do drama político do que da discussão de ideias - acabaram por ser a imagem que fica para a história deste debate. Macron repetiu várias vezes que Le Pen diz “muitas mentiras” e que “manipula a raiva” das pessoas, a raiva que ele entende e que quer pacificar. Le Pen foi Le Pen. Disse tudo o que a sua herança - e caráter - políticos lhe permitem, incluindo alusões à vida privada do adversário [“Não faça jogos comigo. Não temos aqui uma relação professor-aluno”]. Macron casou com uma ex-professora, com quem vive há mais de 15 anos.
Ele chamou-a todo o tempo de “madame”; ela referiu-se várias vezes aos “amigos” dele, nomeadamente para falar da sua ligação ou ao mundo financeiro ou aos socialistas.
Ele disse que ela era “uma pessoa horrível para o país”, que “explora o medo”, “um parasita” de um sistema “que coproduziu”.
Ela disse que “ama a França como ela é” como uma “nação, com cultura, com o seu povo, com esperança” por oposto à França que é um “centro comercial” ou uma “sala de mercados”, que “tem sido atirada para o caos pelos seus amigos políticos”.
A 7 de janeiro de 2015, no mesmo dia do massacre na redação do jornal satírico francês Charlie Hebdo, foi publicado o romance 'Submissão' e era a caricatura do seu autor, Michel Houellebecq, que estava na capa da edição dessa semana do Charlie. Submissão é um romance que se passa em França, em 2020. Tem personagens reais como François Hollande, Manuel Valls e Marine Le Pen colocados num cenário de ficção em que, perante o fracasso dos partidos do centrão francês (socialistas e UMP), as eleições presidenciais se travam entre a Frente Nacional e um ficcionado Partido da Fraternidade Muçulmana. A extrema-direita versus, como alguém escreveu na altura, o islamismo porreiro. No livro, os socialistas acabam por se aliar ao novo partido muçulmano para derrotar a extrema-direita de Le Pen. No pacto de regime que estabelecem, o Partido da Fraternidade Muçulmana imaginado por Houellebecq entrega aos socialistas os ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros - o poder de fazer a guerra e o poder do dinheiro. Apenas exige um outro, como contrapartida, o Ministério da Educação. E é nesse território que se propõe mudar a França. Os medos todos da França estão neste livro - e o pior é que agora estão também no boletim de voto, mesmo que o autor não tenha sido capaz de prever o "fenómeno" Macron.
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