“Dizem que o fogo vem em direção a Mação”. Não são ainda nove da manhã e a primeira troca de palavras augura um duro dia de combate. Três frentes ativas, já arderam casas e há mais aldeias a serem evacuadas por precaução. É fumo que se respira.
Quarta-feira, 26 de julho, o fogo que começou domingo na Sertã e se alastrou ao concelho de Mação não parece dar tréguas à população, aos bombeiros (portugueses e espanhóis), à Proteção Civil, GNR e Exército. Tantos e ao mesmo tempo tão insuficientes. É esta a pergunta que não quer calar. O Presidente da Câmara, Vasco Estrela, agastado, vai questionando os meios destacados para Mação comparativamente a outros palcos. Se aqui a resposta tarda, no terreno não há tempo a perder.
“Andamos há dois dias a ajudar os bombeiros”. São eles os primeiros a chegar à estrada que liga Santos a Castelo, onde se impõe travar um reacendimento. Dois homens, um bidão de mil litros de água na parte de trás da carrinha e uma bomba. “Pedro, vamos esticar”. Posicionam o veículo, puxam a mangueira e observam as chamas. Queima o terreno em torno de uma casa de pedra já ardida e desabitada. Estes bombeiros de improviso não chegam a iniciar o combate, antes fornecem à GNR uma série de indicações que ajudam os bombeiros a chegar ao local. São os da terra quem conhece os caminhos e desenho dos montes e vales. A estrada é por fim cortada. Ninguém passa até o fogo estar apagado e não é possível fazer desvios. Um atrás do outro, param os carros daqueles que escolheram esta via para chegar à sede do município.
“Tenho de ir comprar mangueiras, que derreteu tudo”. A frase é partilhada em tom de desabafo por um casal que abandonou a viatura e observa o combate. São de onde? Questionamos. “De Santos, temos cá família. Precisamos de comprar leite e mangueiras”, repete o jovem. Pedro e Paula moram em Lisboa e, contam-nos, meteram-se a caminho de Santos na terça-feira quando perceberam que a situação se iria complicar. “[A casa do meu sogro] foi a primeira a apanhar com o fogo”, conta Pedro. “Eu pensava que morria”, confessa Paula. “Se não fosse a motobomba do chinês…”, acrescenta ele. “O que mais assusta nem são as fagulhas, é o som, rooo, rooo [que tenta em vão reproduzir]”. E bombeiros? Perguntamos. “Bombeiros? Só hoje, é o efeito Marcelo”, lamenta Paula, numa referência à visita do Presidente da República a Mação, que teve lugar na noite de 25 de julho.
A situação na estrada que liga Santos a Castelo fica por fim controlada. Queremos saber mais, pelo que trocamos contactos com o casal. Pedro contar-nos-á mais mais tarde como foram aquelas “horas de inferno”.
“Sabe, está provado que se as abelhas acabarem deixamos de existir”
Não há vivalma em Castelo. A aldeia de ruas estreitas e tortas foi evacuada. Ouve-se ainda o crepitar do fogo no interior de uma casa, está uma fogueira contida entre paredes de pedra, a consumir a madeira do teto e a escurecer as telhas partidas. De tempos a tempos, uma aeronave de combate a incêndios atravessa os céus em direção à coluna de fumo que se avista ao longe. O cheiro é intenso e incomodativo. A cada inspiração sentimo-nos mais ‘sujos’ por dentro.
O silêncio é interrompido pelo motor de um carro que se aproxima. “O que fazem por aqui, amigos?”. Somos jornalistas, respondemos. “Sabe como é, uns combatem, uns ajudam e outros contam…”, dizemos. “E uns acendem…”, responde-nos José Martins, que segue ao volante de uma carrinha com o pai, Júlio, no lugar do pendura. Os senhores são daqui? Perguntamos. “Não, somos de Cardigos, o fogo passou ao lado. Vamos ver as colmeias”.
Apicultor nas horas livres, José corre as localidades em torno de Mação para ver o estado em que ficaram as suas 70 colmeias. “Trago aqui umas 12 [partes de metal que sobraram]. Arderam todas. Perdi os enxames, porque as abelhas não fogem, morrem lá dentro”, explica. E agora? Perguntamos. “Aproveita-se o que se pode. As que sobreviveram tenho de alimentar, porque agora não há comida. Compro uma comida própria”, acrescenta. E o prejuízo? “Este ano tirei 700 kg de mel, recolhi a semana passada. Num ano normal [sem incêndios] tiro quase três vezes mais”, conta. Acabamos por acompanhar José no périplo pelas colmeias.
O cenário em Vale da Mua é desolador. As árvores estão mirradas, como se tivessem encolhido ao tentar fugir das chamas. O chão é todo cinza a e terra ‘suspira’ fumo branco. São as raízes que ainda queimam. José tinha nove colmeias aqui, está tudo queimado. Não se salvou nada. “Mal-empregado, coitados dos bichos”, desabafa. “Sabe, está provado que se as abelhas acabarem deixamos de existir”. Aponta para os eucaliptos… “É a floresta que temos. Chamam-lhe a mina de ouro verde… está à vista”. Pode ser que as coisas mudem, depois de Pedrógão, comentamos. “Pedrógão? Daqui a dois meses já ninguém se lembra. No inverno já voltou tudo ao mesmo”, responde no regresso à carrinha. Não há nada aqui para salvar.
Nova paragem, junto a Maxieira. Está tudo verde, mas a tal coluna de fumo já não parece tão distante. “Aquele ali, já não o param. Da maneira como ele está, daqui a nada está aqui”, sentencia José enquanto desenha a estratégia para tirar as colmeias que tem ali para outro local. Cada caixa pode pesar 20 quilos. Sabe que tem colmeias perto da coluna de fogo, mas quanto a essas há pouco a fazer. “Não posso ir lá salvar uma coisa e depois fico lá eu”. José trabalha em Lisboa, mas vem todos os fins de semana a Cardigos, onde tem uma quinta. É aqui que extrai e engarrafa o mel das suas abelhas, aquele que faz questão que provemos. “Não comam a cera, é como um rebuçado”, alerta, enquanto nos entrega um favo. É claro e doce, tão doce que por momentos nos faz esquecer o amargo de boca que nos trouxe até aqui.
“É aqui na estrada é que a gente tem de o segurar”
Em Pereiro, está toda a gente na rua, à porta. Assistem impotentes enquanto os carros seguem apressados na via que liga Pereiro a Castelo. O fogo desce a encosta não muito longe. “É aqui na estrada é que a gente tem de o segurar”. “Tragam as carrinhas”. A azáfama é grande. Cerca de vinte homens, civis, correm para cima e para baixo e gritam ordens entre si. “Estamos a organizar de maneira a que [o fogo] não passe a estrada, senão mais ninguém o controla”, explica João, de Ortiga, um dos bombeiros de improviso no local. “Há bocado eu só queria mais mil litros, mais mil litros e tínhamos conseguido”, diz a todos que o queiram ouvir.
“Ainda há pouco estavam aqui os bombeiros. Não tinham mais ninguém para mandar para o outro lado?”, lamenta Luís. Luís quê? “Só Luís”, responde. “Estou aqui desde ontem”. É daqui? “Sim, de Pereiro”. E o trabalho? “O patrão ainda há pouco me ligou para saber se estava tudo bem. Temos todos de ser solidários”, remata.
As respostas são de fugida, as chamas do outro lado da estrada ganham força.
Os bombeiros chegam pouco depois, e com eles a GNR, Proteção Civil e a tropa. Inicia-se, finalmente, o ataque às chamas. Enquanto a água jorra sobre as labaredas mais próximas da estrada, uma máquina de rasto abre caminho entre as árvores - deitando-as a baixo como se fossem construções de papel - para evitar a propagação do fogo.
Aos populares cabe agora a missão de estarem atentos a possíveis reacendimentos do lado contrário.
O vento, que muito dificulta o combate ao incêndio, acaba por mudar e o perigo parece diminuir, já que o fogo que descia a encosta sobe agora rumo ao cume já ardido. Mas a acalmia é de pouca dura. A água acaba e o fogo junto à estrada ganha novamente ânimo. Em poucos minutos somos expulsos. Não é seguro ficar.
No café à entrada da vila de Mação não se fala de outra coisa. “De tantos em tantos anos, é uma agonia que a gente tem”, lamenta Bárbara Rodrigues, enquanto serve a clientela de olhar pregado à televisão, onde se faz o ponto de situação dos incêndios.
“Não sei o que se passa, sei é que isto nunca mais tem fim."
Ficamos a saber ali que a localidade de Casas da Ribeira foi evacuada por precaução e que a A23 está de novo cortada. Toca o telefone, e percebemos que alguém do outro lado tenta também saber dos seus. “Não sei o que se passa, sei é que isto nunca mais tem fim. Mas também às vezes é mais o que as pessoas dizem do que o que é. Temos de esperar”, responde deste lado a anfitriã, cuja casa, conta-nos, fica a uns cinco quilómetros de Mação. Perguntamos-lhe como está a situação por lá. “O meu marido está em casa, tem as mangueiras ligadas”. E senhora optou por vir trabalhar? “E fechava o café? Eu não o seguro”, remata.
Seguraram-no, mas só de madrugada. A noite foi de espera. O prelúdio revelara-se, infelizmente, certeiro. O fogo rumou para Mação. Dezenas saíram de suas casas para observar junto ao posto de comando as chamas que lavravam às portas da vila, a cerca de um quilómetro. Mantela, entretanto evacuada, esteve na linha de fogo.
“O prejuízo aqui é emocional. Isto não tem valor comercial"
Com as chamas controladas, é tempo de visitar as aldeias afetadas. Francisco e Alexandre Pita - pai e filho - pensaram o mesmo. Saíram de Odivelas na quinta-feira de manhã rumo a Casas da Ribeira, onde têm casa e terrenos, uma herança de família.
“Vimos tudo pela televisão. À hora do almoço, quando ligámos para cá, pensámos que tínhamos sido uns sortudos no azar de alguns. Depois, à tarde, tudo mudou. Tenho cá a minha tia, mas ela com a emoção e tudo… Bem, salvou-se a casa, agora é deixar a natureza trabalhar”, sentencia Francisco, de 64 anos. Pior destino tiveram os terrenos, arderam as árvores e as culturas.
O prejuízo é grande? Perguntamos. “O prejuízo aqui é emocional. Isto não tem valor comercial, quem é que quer comprar aqui casa? São precisos incentivos para fazer as pessoas voltar da cidade na reforma. E não os há. Depois, é o desleixo de uns e aquilo que nós não controlamos”.
A tristeza dá lugar à revolta. “Irrita-me este país politizado a todos os níveis. Não posso ver os nossos governantes a proteger o SIRESP e a Proteção Civil. Podem ser bons na cidade, mas aqui quem conhece a zona são os bombeiros locais. A formação é no terreno. Acho que é de muita coragem os bombeiros não entregarem as mangueiras à Proteção Civil… eles que apaguem o fogo. A Proteção Civil é para os boys”.
“Pai, temos de ir”. Alexandre insiste que está na hora de se meterem ao caminho. Estão vistos os estragos, agora é preciso deixar assentar o choque e quando voltarem em setembro, nas férias, meter mãos à obra. Francisco justifica-se: “Sabe, é que falar com vocês é só o que eu posso fazer agora, para eles [os políticos] não acharem que somos todos parvos. Não sou mais esperto nem mais parvo que ninguém”, assegura.
“Foram duas horas de inferno”
Última paragem: Santos. Pedro Pais, de regresso a Lisboa, retoma o contacto para nos contar como três pessoas - ele, a mulher e o sogro - conseguiram impedir que a casa da família fosse consumida pelas chamas na noite de terça para quarta-feira, na aldeia de Santos. Com o relato chegam-nos também as fotografias, tiradas sobretudo antes e depois das horas fatídicas.
“Quando chegámos de Lisboa, na terça-feira, preparámos os nossos meios. O fogo vinha em duas frentes, uma do lado do Carvoeiro, e outra do lado de Frei João. Havia também uma outra frente, mais longe, na Mantela. Evacuou-se a aldeia, mas ficaram umas 15 pessoas, na maioria familiares [dos habitantes], que vieram de Lisboa. Em menos de 30 minutos, o fogo que se aproximava pelas traseiras da casa passou o cume. Fagulhas a voar por todo o lado, e o barulho assombroso que o fogo produz. Por essa altura já tínhamos regado a casa e o quintal. Tivemos de nos agarrar à motobomba para enfrentar o fogo."
"Nunca faltou a luz, nem as telecomunicações. Só havia um carro de bombeiros. A aldeia tem cerca de 50 casas. Foram duas horas de inferno. Foi o dia mais difícil da minha vida. Tive de abastecer três vezes a motobomba. Foi duro, muito duro… A frente que vinha da Mantela acabou por chegar a Santos, a sorte é que chegou desfasada, mas também tivemos de a enfrentar. Assim que nasceu o dia era este o cenário: atrás da casa do meu sogro estava tudo ardido. Aqui [junto às oliveiras] foi onde agarrámos o fogo. Foi horrível esta parte, só pensava na minha filha [de cinco anos], em poder abraçá-la. Aqui [na parte de cima da casa] só estava eu e o meu sogro. Ou vencíamos ou éramos engolidos pelas chamas. Bombeiros, nada. O meu sogro tem 75 anos, é o indivíduo mais jovem da aldeia. Nas casas desabitadas o fogo não perdoou. Em redor da casa do meu sogro era tudo verde, natureza viva, agora é desolador.”
O relato coloca-nos a caminho da aldeia para conhecer o “jovem” Sr. Etelvino. Não são precisas muitas indicações, é a última casa da aldeia, dizem-nos. Encontramo-lo com a esposa, D. Lurdes, e a irmã, D. Conceição, a cuidar do terreno.
Etelvino dá-nos as boas vindas a coxear, magoou-se naquela noite quando tropeçou na rede que lhe protegia a plantação de morangos da curiosidade [voraz] dos cães da casa.
Quando lhe perguntamos porque decidiu ficar a combater o fogo, conta-nos que esteve ligado à Proteção Civil quando trabalhava na Câmara e, com ajuda do genro e da filha, conseguiu salvar a casa. “ A experiência ajudou. Não vê as mangueiras todas estendidas?”, pergunta-nos. “Tinha uma boca para a casa e outra para o barracão das alfaias agrícolas. As botijas de gás, meti-as aqui e tapei-as”, diz, enquanto mostra dois vasos de plástico cheios de água até ao cimo.
Etelvino guia-nos pelo quintal para mostrar, com visível orgulho, a plantação de tomate que se salvou do fogo. Mesma sorte não tiveram os maracujás, os limões e as melancias. Não arderam, mas o calor intenso deu-lhes cabo. De pé mantém-se o espantalho com fardamento da Câmara. Já veio cá alguém? Questionamentos. “Da Câmara têm estado sempre em contacto comigo”, responde.
“Mação não merecia arder”
O incêndio de 2003 é uma memória recente, mas este “foi muito pior”, diz-nos Etelvino. “Foi pior por causa daquelas acácias [a escassos metros do seu terreno]”. O homem não se alonga no relato, acende mais um cigarro e confessa: “só não fumei no combate, depois disso é cigarro atrás de cigarro”. Pouco lhe importa o ralhete que recebe da irmã, Conceição, enfermeira, que se junta à conversa. “Mação não merecia arder”, diz-nos. “Isto é o céu”, acrescenta. “É a terra dos 3 A’s, sabiam? Ar, azeite e água”, diz Lurdes. No entanto, hoje a aldeia está sem água e ar não convida a encher os pulmões.
“Já não tenho idade para voltar a ver isto tudo verde”, desabafa Conceição. “Não chores, mulher”, atira Lurdes, num ralhete solidário. Aqui não há espaço para a comiseração. Abrem-se duas melancias e compara-se este sabor “com o daquelas que vocês compram na cidade. Não tem nada a ver”. São doces. “Em março, volto a plantar as minhas culturas”, diz-nos Etelvino. Já não se fala do incêndio, mas das comidas da terra, dos vizinhos, das memórias de infância.
E agora? É Pedro quem dá a resposta: “É começar tudo de novo. Conseguimos salvar a casa, a propriedade e a vida”.
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