Ana Gomes, que integra o grupo parlamentar europeu do Partido Socialista, anunciou recentemente que não se recandidatará nas eleições europeias de maio.

"Quando sair do parlamento, a primeira coisa que tenho obrigação de fazer é enfiar-me nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) a escrever o processo de Timor visto de Jacarta", disse.

Ana Gomes falava à agência Lusa a propósito da passagem dos 20 anos das declarações históricas do Presidente indonésio Habibie, admitindo a independência do território após consulta popular, que hoje se assinalam.

A atual eurodeputada integrou a equipa de negociadores portugueses no processo sobre a autonomia de Timor-Leste, entre 1999 e 2000 chefiou a Secção de Interesses Portugueses na Embaixada da Holanda, em Jacarta, e entre 2000 e 2003 foi embaixadora de Portugal na Indonésia.

"Eu e a minha equipa escrevemos muito nessa altura e sabíamos que estávamos a escrever para a História. Se não conseguir escrever, 60% já está lá, mas gostava de completar com os 40% de que ainda me lembrar", disse.

Nas declarações à Lusa, Ana Gomes defendeu também que, no ano em que se assinalam os 20 anos do referendo sobre a autonomia de Timor-Leste que conduziu à independência do país, Portugal deve condecorar três altos funcionários das Nações Unidas, que considera terem sido "peças-chave" de todo o processo.

"Gostava que estes 20 anos do referendo propiciassem que o Estado português atribuísse condecorações a dois homens - Francesc Vendrell e Tamrat Samuel - que foram chave neste processo por parte das Nações Unidas", disse.

"Depois acrescentaria Ian Martin pelo papel no período crucial da Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET)", prosseguiu.

Para Ana Gomes, Francesc Vendrell e Tamrat Samuel, "merecem como ninguém uma condecoração de agradecimento do Estado português pelo trabalho extraordinário que fizeram por Timor-Leste, ajudando Portugal na condução deste processo".

Admissão da independência de Timor foi "reação irritada" de Habibie

A propósito da passagem dos 20 anos das declarações históricas do então Presidente interino da Indonésia, Jusuf Habibie, sobre a independência do território, que hoje se assinalam, em entrevista à agência Lusa, Ana Gomes, que integrou a equipa portuguesa nas negociações sobre a égide das Nações Unidas, recordou que a admissão da independência de Timor-Leste "caiu como uma bomba", surpreendendo, em particular, a parte indonésia.

"Vinha ao arrepio do que Portugal e a Indonésia tinham acertado, que era discutir um estatuto de autonomia que seria posto à consideração do povo de Timor. Foi uma bomba, muito mais para o lado indonésio do que para nós, mas foi para todos", disse.

A 27 de Janeiro de 1999, o novo Presidente da Indonésia, Jusuf Habibie, que chegara à Presidência na sequência da queda de Hadji Mohamed Suharto, anuncia que Timor iria receber uma "autonomia regional" e que "se a maioria dos timorenses não a quisesse, [o Governo iria sugerir ao Parlamento que] Timor fosse libertado da Indonésia".

Ana Gomes estava em Nova Iorque, a dois dias de viajar para Jacarta, onde a 30 de janeiro assumiria a chefia da Secção de Negócios de Portugal na Embaixada da Holanda, aberta na sequência das negociações que estavam a decorrer sobre a autonomia do território.

"Ficamos absolutamente espantados porque aquilo punha em causa a posição negocial da Indonésia, que nunca tinha querido por a referendo a ideia de independência ou sequer admitir a ideia de independência. Os indonésios foram os mais chocados", recordou.

Para Ana Gomes, o que Habibie fez foi oferecer aos timorenses "um Mercedes", quando lhe tinha sido prometida "uma bicicleta".

"Os timorenses mesmo que não soubessem conduzir, obviamente preferiam o Mercedes", sustentou.

A eurodeputada, que no dia seguinte ao histórico anúncio tinha uma nova reunião negocial, recorda "perfeitamente a cara" do chefe da delegação indonésia quando lhe foi perguntado sobre as declarações do Presidente Habibie.

"O principal negociador indonésio estava completamente aparvalhado com aquela posição do Presidente Habibie", disse Ana Gomes.

A eurodeputada, que mais tarde viria a ser embaixadora de Portugal na Indonésia, enquadra a posição do antigo chefe de Estado no contexto da sua condição de Presidente interino, de membro de um grupo muçulmano "assertivo", que considerava os timorenses ingratos, e com uma personalidade de "franco atirador".

Por outro lado, acredita Ana Gomes, a tomada de posição resultou de "uma irritação provocada" pelo primeiro-ministro da Austrália de então, John Howard, que, em carta dirigida a Habibie, sugeriu para Timor-Leste uma solução semelhante à encontrada pelos franceses para a Nova Caledónia.

"Isso irritou profundamente Habibie[...] porque a Nova Caledónia era um exemplo colonial e se havia coisa que muita gente não gostava na Indonésia era que assimilassem o seu papel em Timor-Leste ao de uma potência colonial. Aquilo foi visto como um insulto de uma potência a imiscuir-se e [...] portanto, teve aquela saída, de improviso e irritada", considerou.

Para Ana Gomes, tratou-se de "um ponto de não retorno" em que o que passou a estar em causa já não era a autonomia, que viria a ser rejeitada em massa no referendo de 30 de agosto, mas a independência.

A eurodeputada aponta, no entanto, que havia quem pensasse que se tratava de mais "um truque" dos indonésios para "destabilizar o processo negocial", mas diz ter recebido, quase de imediato, garantias do ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia, Ali Alatas, de que o processo negocial era para continuar.

"Em Jacarta, tive desde logo a intuição de que era uma oportunidade única que não podíamos lançar pela borda fora. [...] A partir daí mudou de facto o curso da História", disse.

Já com um novo presidente eleito nas primeiras eleições democráticas na Indonésia, Abdurrahman Wahid, o parlamento indonésio aprovou a 28 de outubro de 1999 a desanexação de Timor-Leste.

"No dia seguinte apresentamos o pedido de restabelecimento das relações diplomáticas, que foram restabelecidas dois meses depois, a tempo de Portugal, no dia 01 de janeiro de 2000, assumir a presidência da União Europeia, facto muito importante para a celeridade de todo este processo", disse.