Peito dourado, penas brancas que só se vêm quando levanta voo, o maçarico-de-bico-direito (Limosa limosa) passou os últimos meses no estuário do Tejo, a maior e mais importante zona húmida do país, a comer, a descansar, e por estes dias volta à casa de verão, nos Países Baixos, para nidificar. Voo direto, dois dias inteiros. Alguns ainda vão para mais longe.

Atualmente estão 31 mil maçaricos no estuário do Tejo, mas podem chegar ainda a 40 ou 50 mil, metade dos que paravam por ali nos anos 1990.

Dentro de alguns dias, em bandos, começam a abalar. Na segunda metade de fevereiro já fazem sons de emigração.

José Alves, biólogo, conhece bem a ave. Por ela, mas também por todas as outras que usufruem do estuário do Tejo, 200 mil pelo menos, possivelmente “300 mil nas épocas migratórias”, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) chumbou há poucos dias a possibilidade de ser mantida a Declaração de Impacto Ambiental (DIA) para um possível aeroporto no Montijo.

“Novos estudos sobre a avifauna”, alegou o ICNF para negar a validade da DIA que permitia um aeroporto no Montijo. Agora, em plena zona protegida, Vila Franca lá muito ao fundo, José Alves fala à Lusa de um desses estudos.

Investigador principal do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), da Universidade de Aveiro, especialista em ecologia e conservação da biodiversidade, José Alves lembra que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para o aeroporto do Montijo de há quatro anos deu parecer favorável à estrutura, o que até hoje não compreende, tanto mais que se trata de uma área protegida.

E lembra um estudo que coordenou para quantificar os verdadeiros impactos de um aeroporto no Montijo com aviões a sobrevoar a área protegida.

“Esses estudos revelam que os impactos são muito maiores do que aqueles que tinham sido detetados”, dando argumentos ao ICNF para a decisão que agora tomou, diz, explicando que ao contrário do que sugeria o EIA a população de maçarico-de-bico-direito não seria afetada entre 0,5 a 5% mas sim em pelo menos 68%.

“Ter um aeroporto em que as aeronaves iriam sobrevoar uma área protegida é algo de contrassenso”.

E com um aeroporto no Montijo, segundo o proposto, “as aeronaves iriam sobrevoar a área protegida” mal saíssem da pista, a uma altitude de 200 metros, produzindo níveis de ruído que iriam afetar as aves.

José Alves, binóculos ao peito, mostra à Lusa na zona da Ponta D´Erva os bandos de maçaricos, mas não é só deles que fala quando explica a avifauna do estuário. Como a dar-lhe razão milhares de patos (pato-trombeteiro, Spatula clypeata) levantam voo, assustados por um carro, e pousam num campo mais longe. Em abril também eles levantarão voo para outros campos, na Rússia.

E um aeroporto em Alcochete? “Há de ter outros problemas”, considera.

Mas a localização Montijo, garante, “é muito má”.

Em 2020 milhares de neerlandeses juntaram-se para a contestar (assinando numa petição). Mais uma vez em causa o maçarico-de-bico-direito, a ave nacional dos Países Baixos. Eram 200 mil no passado e hoje são 66 mil exemplares.

Apesar do decréscimo, a ave tem um estatuto apenas de “quase ameaçada”, mas José Alves acredita que se a tendência de declínio se mantiver poderá passar para o estatuto de ameaçada.

A Reserva Natural do Estuário do Tejo abrange mais de 14 mil hectares e engloba lezíria, esteiros, mouchões sapais ou salinas. O próprio ICNF reconhece que a sua grande importância se relaciona com a avifauna, incluindo o maçarico, também chamado milherango.

José Alves sobe várias vezes a uma espécie de torres de observação, na verdade comportas para regular a água nos campos de arroz. É neles que os maçaricos descansam agora, onde comem o arroz que sobrou das colheitas para aguentarem o regresso a casa.

Há bandos ao longe, aponta. Mas também outras aves, conhece-as de cor, ali uma água pesqueira (Pandion haliaetus), acolá um abibe (Vanellus vanellus), mais ao longe um pequeno grupo de íbis (plegadis falcinellus).

“De um modo geral estas espécies de aves aquáticas, e particularmente aves limícolas (das zonas húmidas), estão em declínio”, pela perda de habitats, pela pressão urbana sobre as zonas húmidas.

É por elas mas também pelos habitats, que foram considerados importantes e designada zona protegida, que o estuário não pode ter um aeroporto, justifica o biólogo.

“Se nas zonas protegidas podemos construir aeroportos, que vão ter efeitos negativos nessas zonas, então fora delas podemos fazer tudo o que quisermos. Eu sou da parte da população portuguesa que acha que é importante preservar a biodiversidade”.

E o estuário do Tejo, alvo de todas as proteções, diz o responsável que o é também de todas as pressões, da urbanística à recreativa ou à utilização dos recursos.

Na zona dos arrozais, que começa a ser trabalhada a partir de março, quando as aves já foram embora, não se nota a pressão, não fosse uma avioneta passar algumas vezes, voos de treino do aeródromo ali ao lado. Não perturbam as aves? Claro que perturbam, responde.

Sem o avião ouve-se o bater metálico de um antigo moinho de vento para tirar água, ouvem-se as aves, veem-se ao longe as torres de uma cimenteira junto a Vila Franca de Xira, as nuvens a parecerem fumo que sai das chaminés.

Num dos campos de arroz descansam 15 mil maçaricos-de-bico-direito. A presença humana, excecionalmente, não parece incomodá-los.

A ave é desde este mês objeto de um programa de conservação que envolve Portugal, Países Baixos, Alemanha e Gâmbia, no valor de 15 milhões de euros, a sete anos, o “LIFE Godwit Flyway”.

Em Portugal o apoio vai servir para recuperar habitats e sistemas hídricos e para gerir os arrozais.

Tudo isso e o chumbo de um aeroporto por causa de um passarinho? José Alves sorri. “Mais do que um passarinho é uma bandeira, é uma declaração de Portugal a dizer que dá valor à biodiversidade”.